Quando eu era criança, em 1981 ou 1982, de mãos dadas com a minha mãe, eu caminhei, certa vez, pelas ruas do centro de São Paulo. Buscávamos um livro universitário para o meu irmão mais velho.Eu nem sabia que nessa época não era permitido ler qualquer coisa.Às vezes, a ignorância pode ser um bálsamo.
Há cenas que vemos ainda muito crianças que, mesmo depois de adultos, não conseguimos entender o porquê delas. Esta, fervilhou um bom par de tempos em meus pensamentos.
O dia estava quente demais, de modo que a minha mãe resolveu nos comprar uma garrafa de guaraná .A bebida foi dividida em copos pequenos, na medida exata da nossa sede.
Na saída da lanchonete, Dona Ana parou à porta e vasculhou sua bolsa, à procura de velha sombrinha colorida, proteção singela do sol.
Foram instantes ali, mas necessários para que eu me assustasse com o cena que passeava diante de meus olhos.
A polícia montada estava às ruas e, enquanto a sombrinha se espreguiçava, um policial parou à porta da lanchonete e descavalgou. Calmamente, abriu uma caixinha amarela de chicletes (aquela da Adams com duas unidades, sabe?) levou um deles à boca e ofereceu o outro chicletinho ao quadrúpede.
Nunca imaginei que o cavalo pudesse ter dentes tão enormes e que ainda mascassem chicles!
Senti uma aflição.Uma aflição muito diferente da dos estudantes que eram perseguidos pelo regime militar. Diferente daquela do grupo reunido que era brutalmente disperso pela polícia montada, enquanto eu me pasmava com a mascação do animal de tom acastanhado.Mas ainda sim, era uma aflição, um estranhamento, um medo. Foi como se eu sentisse uma amostra do peso da Ditadura Militar em mim, uma criança de seis ou sete anos. Eu ouvia dizer, sem entender, que as pessoas temiam a polícia montada.Óbvio, devia ser por conta da arcada dentária dos equinos!
Mas, de certa forma, na minha inocência, eu não estava totalmente errada: o regime militar foi marcado pelo autoritarismo, pela supressão dos direitos constitucionais, pela perseguição política, prisão e tortura dos opositores e pela imposição da censura prévia aos meios de comunicação.
Trocando em miúdos: a Ditadura, armada até os dentes, mastigou feito chiclete os sonhos e a paz de muitos brasileiros.
(Maria Shu - 09 de setembro de 2009)