Aparição
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Quase nada se sabia daquele homem. O que se tinha de concreto era que ele ostentava um nariz adunco, aquilino. Vivia silenciosamente entre os vizinhos, mas as pisadas, sinais grafados ao longo da estrada carroçal, denunciavam sua passagem.
Nas últimas sete semanas formou-se um ritual ao longo das ruas. Todos os curiosos moradores o espreitavam passar, não se sabia para onde, pontualmente às sete horas da manhã, retornando, sem atrasar um segundo sequer, às dezessete horas, quando o sol já se mostrava cansado e ansioso por deitar.
Tão logo a imagem dele surgia, translúcida, mas tremida, diante de nós, o sino da única igreja da cidade soava em estridulosas badaladas. Eram exatamente 14 badaladas, nem a mais nem a menos! Quem anunciava quem? Estaria o homem a atrair os repiques? Ou ele ressurgia, metafisicamente, ao som das uníssonas badaladas provocadas pelo serventuário da capela? O homem parecia materializar-se aos arrufos do sino... O povo delirava. O tempo estava sincopado, nossas mentes estavam sincopadas e as tradições pareciam quebradas pela aparição daquele homem. Ora, os sinos sempre dobraram uma hora antes da Ave Maria!
Aquele homem pesado, gordo e de cheiro forte percorria as veredas do vilarejo, até onde nossa visão podia buscar, e depois sumia... Minha acuidade visual não era das melhores, nunca foi, mas eu o sentia, mesmo assim, sumindo como aroma de perfume Francês, deixando saudade.
Estávamos presos àquele homem. Vivíamos em função da rotina que ele, inconscientemente, criara em todos nós. A cidade girava em torno das habitualidades dele.
Se possuía algum passado, ele o deixara perdido no tempo, acorrentado, talvez, apenas às recordações que o perseguiam durante as caminhadas pendulares dos dias que se seguiam, firmes e pontuais como o respirar de cada ser humano, aceitando as interferências decorrentes dos resfriados, das tosses e do suplício dos asmáticos que respiram como se tragassem um entorpecente de efeito alucinógeno e causticante. Impossível caminhar sem refletir. Estaria ele preso a recordações? Ele nunca nos olhara diretamente. Nunca o percebi admirando a beleza do horizonte. Caminhava cabisbaixo como a sofrer o peso do fardo que o consumia a si mesmo.
Meu poder estava na insistência. Minha fraqueza, na falta de coragem. Eu e todos os outros apenas o olhávamos e observávamos... Nada de o seguirmos. Afinal, pra onde ele se dirigia todas as manhãs? O que fazia?
Quis investigá-lo. Não havia cheiro de comida. Não havia sinal de móveis. Nunca sequer tínhamos escutado qualquer sinal da descarga do banheiro da acanhada residência de apenas três cômodos!
Ninguém dava notícia da sua instalação. Se chegou de madrugada não pediu ajuda; se chegou durante o dia e não percebemos, deve ter chegado dos céus, pois suas pesadas pegadas o denunciariam acusticamente – mesmo que não o ouvíssemos chegar, os sulcos das pegadas seriam encontradas depois por qualquer morador desavisado, pois éramos tão íntimos que nos conhecíamos até pelos rastos deixados ao longo do único caminho que nos ligava ao que achávamos tratar-se de civilização.
Ele caminhava. Nenhuma saudação – nem de lá nem de cá. Temíamos dar um “Bom dia!” – e se não obtivéssemos nenhuma resposta?
Ele retornava, suado. Eram dezessete hora! A cada dia se mostrava mais carcomido pelo sol.
Eu desejava ouvir um “Boa tarde!” daquele homem; queria pelo menos isso, poder cumprimentá-lo, mas como o chamaria: de ‘Seu Zé’? Ele parecia um homem instruído, apesar das pegadas de elefante que tremiam os torrões do nosso árido chão, levantando poeira. Ele usava sempre roupas brancas, roupas parecidas ou iguais, não saberia precisar porque o que nele me atraía, além do nariz de águia, era o estrondo de cada uma de suas pisadas ao deambular.
Ele passa por mim e, mais uma vez, nenhuma saudação...
Cinco. Seis. Sete passos. Pronto, ele está em casa. Entra. Fecha a porta e nada de movimentação. Nem TV, nem fogão ligado. Nem descarga! Ele respira? Com o ouvido grudado à porta, não percebo nenhum sinal de vida – o estático parece ser a única dinâmica permitida. Silencio. Aquele lar me fez ouvir minha própria respiração, numa luta ferrenha com o cantar de um grilo que me atormenta! Pronto, pisei no desgraçado e agora posso auscultar a pulsação daquele homem. Outro grilo começa a cantar...
O dia ensaia amanhecer. O sol parece ainda cansado como se a noite tivesse sido uma deliciosa pândega.
Exatamente às seis horas, canta o galo da D. Quequé, o meu galo preferido. Sinto-me sôfrego, demasiadamente malsofrido. Naquele dia eu romperia a barreira do silêncio, já estava decidido, e dirigiria àquele homem de nariz aquilino, distante apenas sete passos da minha casa, um “Bom dia, Seu Zé!”
Sete passos... Sete horas... As janelas das casas do vilarejo se entreabrem todas ao mesmo tempo. Era o balé da bisbilhotice. Percebe-se que carinhas curiosas e fofoqueiras se escondem atrás das frestas.
O galo de D. Quequé canta. Eita galo pontual!
Sete minutos depois algumas cabeças, não satisfeitas, ultrapassam a fronteira das janelas e, parecendo galos e galinhas presos em celas, ficam todas, assustadas, olhando para os lados, na esperança de que o homem surja diante de nós. Nada, nenhum sinal.
Olhávamos todos. Observávamos também, mas nada de agirmos. Estávamos presos aos nossos próprios medos e divagações.
Passaram-se sete dias. Mudei de cidade, sentindo um alívio hercúleo – talvez minha tão desejada ataraxia não pudesse mesmo ser atingida ali, num lugar enxertado de homens e mulheres que temiam a vida com a mesma intensidade com que tememos a morte. Minha alma estava distante dos seus prazeres sensíveis e espirituais. Precisei partir sem deixar nenhuma saudade além da que carregaria comigo como uma impingem que coça em demasia, doi de forma extremada, mas causa um pouco de prazer quando nos sangra a pele.
Aos poucos, o vilarejo se esvaziou como se uma faca o tivesse atingido, dilacerando as vísceras e provocando no corpo social uma hipovolemia fatal. Onde havia esparsas moradias virou, aos poucos, o habitat de pássaros silvestres e de répteis asquerosos e tão indesejáveis como todos os que ali habitaram.
Hoje, já velho e bem mais perto do recomeço, ainda sinto o vazio da frustração de, por puro medo, não ter dito um “Bom dia!” àquele ilustre desconhecido, enquanto a vida nos permitiu coabitar. E, nos meus sonhos, ainda ouço as pegadas dele e o seu cheiro forte – cheiro que se tornou insuportável por vários dias, até que o último habitante fosse embora sem poder nos contar o que realmente aconteceu na casa que ficava a sete passos da minha. Casa que, ainda hoje, permanece fechada e silente como o fez seu mais ilustre morador.
Talvez os possíveis futuros moradores, numa redescoberta daquele vilarejo, possam, por mero acaso, encontrar os vestígios de vida que um dia ali se fez existir ou verificar que no interior daquela habitação nunca houve sinal de vida, que se tratou de edificação morta ou fruto apenas da imaginação de todo um povoado que precisava de superstições para sobreviver.
Nijair Araújo Pinto
Crato-CE, 16 de agosto de 2009.
03h44min