Crônicas da esquina ( Tempos difíceis )

TEMPOS DIFÍCEIS

“Tempos difíceis, hein, seu João!”. Essa expressão, mas de vocativo vário, há muito faz parte do vocabulário coletivo. Quanto a mim, não me recordo de tempos melhores a não ser nos sinceros votos de fim-de-ano. No entanto, mesmo nessa data, quando o ano novo amanhecia, já carregava as mesmas dificuldades de seu predecessor. Os tempos eram sempre difíceis para o velho pai, funcionário do IBGE que, como tantos outros, tinha a árdua tarefa de matar um leão por dia. Tarefa aos filhos legada como uma herança que recebíamos orgulhosos.

Cresci na dificuldade. Muitos cresceram. Afinal, os tempos eram difíceis. Em nossa casa – e acredito que em tantas outras – éramos iniciados numa linguagem muito particular da avó materna que, por meio de palavras e expressões, permitia que entendêssemos de prima o estado de nossa penúria ou abastança. Assim, se alguém falasse que seu Bernardo e seu Ferrerinha tinham estado conversando na sala, logo reconhecíamos a falta de dinheiro e que o almoço não teria nenhum acompanhante além do feijão com arroz. Portanto, nessas horas, nada de convidar nenhum amiguinho para almoçar, essa velha mania dos que tinham dificuldades.

Em outras ocasiões mais alvissareiras, o pão à hora do café e o prato de bife à mesa do almoço assomavam com a recomendação materna: piano, hein. Era isso. Apenas um para cada um que a maré estava braba. E mesmo nas melhores épocas, onde era difícil manter as regras, vinham-nos as admoestações de vovó: meninos, dia de muito, véspera de nenhum!

Eram tempos difíceis, mas havia o que improvisar. Afinal, morava-se, comia-se, estudava-se e vestia-se o indispensável, sem luxo, mas dignamente.

Hoje, os tempos não são mais difíceis: são assustadores e, para uma legião, impossíveis de serem vividos. A zona fronteiriça limita os que passam fome e os que vivem dela. Hoje, os despossuídos assim o são até de si mesmos e são atirados ao limbo do descaso público. Se o progresso gerou a fome e aprofundou suas raízes, então não é progresso; se a tecnologia produziu esse exército de Brancaleone, condenado a migrar de um deserto para outro, então não é tecnologia. A miséria não é um acidente. No entanto, não tem que ser assim. A esperança é quem ainda nos mantém vivos e indignados e oxalá não tenhamos que repetir pela vida afora: “ Tempos difíceis, hein, seu João!”.

Aldo Guerra

Vila Isabel, RJ.

Aldo Guerra
Enviado por Aldo Guerra em 15/06/2006
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