Criolando, Salomão e o fim de todos
Em quase toda cidade do interior existem aquelas pessoas que se tornam populares pela excentricidade ou esquisitice que vivem. Lembro-me que em Jaú, onde cresci até minha juventude, havia um homem que andava sempre acompanhado de um cavalinho de pau. Criolando, como era conhecido, com seu inseparável cavalinho visitava todos os velórios, e chorava em cada um deles. Não bastasse isso, se fato ou folclore, conta-se que prognosticava quem morreria naquele dia, chegando muitas vezes até passar pela casa de tal pessoa. A morte o acompanhava, e a dupla - homem e cavalo - seguia aquela que atormenta os vivos. Enquanto tantos buscam festas para ocupar suas agendas e esquecer-se das preocupações, Criolando procurava os que pranteavam a perda dos seus. Hoje, a sepultura de Criolando é uma das mais visitadas no cemitério jauense.
Loucura ou sabedoria? Excentricidade ou altruísmo generoso? Condenação ou consolo? Antagonismos a parte, de um modo claro, o sábio rei Salomão concluiu que é melhor estar onde há luto do que onde há festa, pois no velório se vê o fim de todos. Na festa, ou de festa em festa, este evento real e inevitável é ofuscado, mas não apagado. E como qualquer coisa séria e certa na vida, deve-se considerar tal fato e seu desdobramento com temperança. Criolando que o diga.
Já que velório é um privilégio, ou melhor, uma oportunidade que nos enriquece, como regra fui abençoado no último que participei em Pompéia. Infelizmente a família querida e admirada por mim e por muitos sofria a dor do adeus, do laço da vida sendo desatado para um dos seus. Mas certamente estão consolados por crerem que as pontas deste laço estão nas mãos daquele que faz e desfaz os tais.
Na sala velatória, por detrás do caixão, janelas de blindex permitiam ver a paisagem de montes e vales com árvores e arbustos revigorados pelas chuvas de verão. O dia também se despedia, sendo apressado o fim das luzes por nuvens densas de chuva que se formavam e eram movidas pelos fortes ventos que sopravam. Subitamente os contornos destas nuvens eram destacados por relâmpagos que cortavam a paisagem. Nesse quadro quase inexplicável meus olhos se fixaram por um tempo. Vi as árvores, umas mais altas, outras mais baixas e robustas vergando-se aos ventos, que apesar de invisíveis como as tribulações da vida, não se podia negar sua presença insistente em dobrar quem se punha em seu caminho.
Que metáfora da vida! Logo ali, por detrás da cena da morte e diante dos olhos dos vivos. Vida que luta contra o invisível, e insiste em combater a faminta morte. Vida que resiste para permanecer e ser eterna como é seu criador, que um dia destruirá a teimosa que se opõe à sua criação. Para mim um dia a corda se soltará, o laço se romperá e as forças acabarão. Onde deitarei minha alma quando aos ventos eu não resistir mais? Um corpo cansado em qualquer chão pode repousar, mas e uma alma, onde repousará?
Com estes pensamentos na mente meu olhar estava voltando para dentro da sala no momento que iniciávamos uma cerimônia de despedida cantando “Mais Perto Quero Estar, Meu Deus de Ti”. Com a emoção embargada por esta canção, a mesma que a orquestra a bordo do Titanic tocava quando o naufrágio era certo, respondi e dei sossego pra minha alma enquanto via o fim de todos.