Pellegrino (um pouco Mais)
“A questão básica do homem não é o suicídio. É a ineficácia do suicídio (o suicídio seria puramente sintomático). Não é uma questão tática. Taticamente o suicídio resolve o problema da vida. E estrategicamente? Nós, seres humanos, transcendemos o suicídio.” “Deus suicidou-se, ele sofria há muito de grave teofobia. E tinha pressa, coitado. E o culpado, o culpado somos todos nós. Mas não nos preocupemos, nós temos alguns bons álibis”. “Outra questão é o suicídio divino. Nós, humanos, também transcendemos Deus, nós ultrapassamos o infinito. Vou além: nós suicidamos Deus a cada vez que o renegamos. Ao negá-lo, proclamamos automaticamente a sua vulnerabilidade, a sua falibilidade. Deus, em suma, tem muita sede e está sentado, impaciente. Quem levará um jarro de água para ele? ”.
Este trecho da palestra ( “Humanidade: enfado consigo mesma”) foi o triste pivô para uma série de retaliações raivosas e indignadas do clero, sociedade civil e militar. Omitira-se deliberadamente a fome divina, esquecera-se - propositadamente ? - de mencionar o seu último terno de gabardina, além da alusão precipitada e desnecessária ao seu mau humor e a sua sisudez, foram os comentários. Pellegrino é julgado a revelia por uma corte internacional (haveria insultado a humanidade; cometera perjúrio contra a eternidade; ofendera gravemente a morte; o infinito sentira-se prejudicado. E a imensidão? Escondera-se, envergonhada! Tudo criminosamente premeditado. ) e condenado a usar calça curta sem uma única bainha pelo resto da vida ( esta pena, pelo seu caráter hediondo, traumatizou o pobre P. de tal forma, que viu-se obrigado a consultar um psicanalista durante 28 anos com graves seqüelas psicológicas ). Graças ao auxílio de seu grande advogado, um famoso criminalista, a sua pena é abrandada: calça curta sim, mas poderia usar também meias brancas aos fins de semana e feriados, quando fosse ao zoológico ou ao parque. E o uso de tênis seria opcional, mas sempre com os cadarços soltos com displicência. E quanto a sua postura, poderia aparentar apenas um discreto ar de felicidade sempre após o lanche das 15 e 47 horas. Não poderia, entretanto - sob nenhuma hipótese! - ficar amuado 02 e 27 horas antes do desjejum.
Como o longo processo havia obrigado os magistrados a abandonarem seu justo descanso, sua pena é aumentada: além da calça curta (agora com um grande remendo azul marinho) deveria usar boné virado de lado e pior: deveria também aparentar uma falsa felicidade e um ar de soberba e crueldade todo dia ao acordar às 06:07 horas; além do mais nunca mais poderia tomar banho de piscina! Mais: deveria agora lavar o lenço de sua mulher toda semana, inclusive aos sábados e domingos e feriados. ( Aterrado e envergonhado, P., em sinal de protesto, nunca mais olhou para o pulôver de sua irmã.)
Nesta época, Pellegrino, sempre distraído, toma de empréstimo a trompa de falópio de sua prima e apresenta-se num festival de música livre. Fracasso: P. desafinava muito com trompas alheias e é obrigado a devolver a trompa em perfeito estado e ainda com um brilho de graxa na parte dianteira. Devido a este contratempo Pellegrino é condenado – de novo! – a ensaboar-se durante dois anos com o suor de um vizinho do segundo andar.