RONALDINHO GAÚCHO: CRÔNICA SOBRE UM REINVENTOR

Queria escrever sobre o talento de Ronaldinho Gaúcho sem precisar fazer uso das metáforas, tão propriedades suas. Jogar fora por alguns instantes o batuque lírico das palavras e descrever com fidelidade iraniana e termos técnicos o que esse moço faz com a bola. Mas pobre de mim, longínquo e atônito observador de lances mágicos do futebol e das letras, ficaria sendo um injusto, um desnecessário e frio sujeito desonesto.

Ronaldinho Gaúcho não precisa da bola para mostrar a sua arte. A bola, descobri, é quem lhe implora para ser tocada, acariciada e conduzida ao retorno da poesia no campo. Antes de chegar aos pés do mulato porto-alegrense, a bola oferece aos outros 21 jogadores seu lado recatado, de menina severa, com ideais e objetivos traçados. Para os outros 21 coadjuvantes, ela permanece a mesma virgem de sempre, a inalcançável, a inseduzível. Quando cai nos pés do camisa 10, suprema perdição, gosta de sentir-se reles, vadia, a mais baixa meretriz. Sim senhores, para ter o prazer de ser tocada pelos apolíneos pés do craque a bola desinventa a moral, a ética e se entrega, deixando sua alma de pássaro deslizar pela grama, em sinal de reverência ao mestre. Ele sabe os caminhos, conhece o olimpo e foi co-inventor do oásis da bola.

Nos pés de Ronaldinho Gaúcho, a bola segue não mais que alegre. Segue reta ou paraboleando, porém soberana, como o sorriso da mãe que acorda com a sensação que o filho morto ressuscitou para lhe pedir a última benção. Ronaldinho é um poeta, não desses simples, que insistem em rimar seu coração de rei com os infortúnios da paixão. Ele é mais que isso, nos seus dez pés, a bola conhece o seu momento de unção. E ela, quase abandona o campo após um gol, um drible, uma finta ou qualquer outra singela invenção. Seria egoísmo continuar a merecer sozinha as elegantes dádivas, mas ao lado do seu amor, a bola tem direito a pelo menos oitenta pecados mortais. Quando Ronaldinho toca a bola são sucessivos orgasmos. O gol necessariamente, não precisa ser realizado. Ele está ali, numa paisagem de sempre, acessível aos gênios e aos medíocres, solidário a todos. A magia, essa sim, é latifúndio de Ronaldinho, sua propriedade, patente celeste. Catalães, brasileiros, marcianos e espíritos desgarrados, vamos celebrar o drible, o deslumbre, o passe. Corramos e gritemos, esvaziemos as nossas gargantas, retirando dela o pó de muitas décadas.

Ronaldinho Gaúcho não dribla: faz a bola percorrer o adversário, desinventando em seu corpo a lei da gravidade. Ronaldinho Gaúcho não dá um passe: fornece uma doação, tal qual a mãe do transplantado. Ronaldinho Gaúcho não marca o gol: ele apenas, num momento de retribuição da bola como mulher que goza, é conduzido ao íntimo estado da gratidão, e como correto cidadão do inexplicável faz também o óbvio, para experimentar a sensação de mortalidade.

Você que completa agora seus dez anos de vida, esqueça seus brinquedos por alguns minutos e se imagine como o mais privilegiado dos torcedores. Aquele que no extremo momento da inocência, viu nascer sob seus olhos, desafiando as leis da possibilidade o absurdo segredo de juntar numa mesma taça os frutos do milagre e do imaginário e deles extrair um impossível vinho.

Você que agora é velho, bem velho, não tente entender se é real ou sonho o que seus olhos enxergam fazer esse moleque. Pense apenas que é algo da sua imaginação delirante, como um cometa que talvez tenha passado, mas que você não tem certeza se viu ou se te contaram.

Você que nasce agora, não chore ao avistar o mundo. É permitido o sorriso, pois num distante gramado um menino pobre e de uma alegria esculpida na face, está operando seus partos, trazendo à luz uma nova forma de vida. Está recatalogando todas as bolas, colocando em seus hexagonais um chip de alma velha. Talvez isso não muda a direção do mundo, não torna as crianças sudanesas mais alimentadas nem resolva a crise do Oriente Médio. Mas deixa menos secas as nossas esperanças e nos faz envelhecer com mais sutileza, não nos deixando esquecer de carregar nossos brinquedos. Talvez a arte de Ronaldinho Gaúcho não vá amenizar as nossas coleções de misérias, mas certamente, como pássaro solidário, pousou em alguma cálida noite sobre os sonhos de algum menino pobre, que um dia num sonho de rebeldia, se imaginou herói ou gigante, só para acabar com o tédio do possível, do previsível, das organizadas coisas do homem comum.

Anderson Alcântara
Enviado por Anderson Alcântara em 28/07/2009
Código do texto: T1723213