Obsessão






          Ontem à noite eu estava lendo um livro policial. A Lua de Papel, de Andrea Camilleri. Bem no comecinho o protagonista, Salvo Montalbano, explicava porque ultimamente aderira ao uso do despertador. Disse ele que sempre confiou no seu relógio biológico, nunca tendo precisado de um despertador. Diariamente acordava dez minutos antes da hora que realmente precisava acordar para ficar pensando bobagens. E que esses dez minutos acabavam sendo os melhores do seu dia até que uma frase começou a se intrometer em seus devaneios: Quando chegar o dia de sua morte... E assim, dia após dia, seja qual fosse a bobagem que estivesse pensando, a frase se intrometia no meio dela e acabava estragando o seu dia. Então, para fugir do pensamento intrometido ele resolveu colocar o despertador e mal ele tocava levantava correndo, na verdade fugindo daquela frase ameaçadora. Acabei de ler o parágrafo fechei o livro e comecei a pensar. Bobagens, é claro. Também gosto de deixar o pensamento vagando. E assim como Salvo, eu também não preciso de despertador: quando deito digo: amanhã tenho que fazer isso, logo a hora de acordar é... Acreditem, funciona. Funciona melhor ainda quando ao deitar-me eu digo: amanhã eu nada tenho para fazer. Eta vida boa! Aí eu durmo, durmo a ponto de acharem que não vou mais acordar, que morri. Mas enquanto pensava em relógios biológicos e em despertadores ensandecidos eu me lembrei de um pensamento obsessiva que me acordava noite após noite, fora de hora, em plena madrugada, agindo como um despertador fatídico.
          Sempre fui uma pessoa de bem com a vida. Mesmo quando me sinto debaixo dos pés da humanidade eu penso na transitoriedade da vida e a toco para frente. Mas houve um tempo em que quase não dei conta.
         Não me lembro de ter tido uma amiga de infância. Mas tive dois amigos. Todos os dois, poucos anos mais velhos do que eu: um era meu primo, o outro meu tio. Crescemos juntos, brincando. Com eles aprendi a ler gibis, colecionar figurinhas, discutir futebol e à medida que íamos crescendo, tendo outros interesses. O tempo foi passando e cada um de nós seguiu sua vida. Mas um dia, do nada, um deles morreu. E isso me tirou completamente o equilíbrio. Eu o via em todos os lugares, eu sentia a sua mão em meu ombro e pior do que tudo: passei a acordar no meio da noite ouvindo a seguinte frase: eu vou suicidar, eu vou suicidar. Fiquei apavorada, sentia até medo de dormir. Nunca em minha vida, nem nos piores momentos, eu jamais tinha pensado em suicídio e continuo ainda hoje achando um esperdício acabar com a própria vida seja lá por qual motivo for. Mas aquela frase não parava. Até durante o dia, se eu tirava uma soneca, lá vinha ela. Apesar de não parecer nunca fui de abrir muito o meu íntimo com as pessoas. Só aprendi a me liberar um pouco depois que comecei a fazer terapia. Mas nessa época eu ainda não fazia e por isso já bastante desesperada contei para uma amiga. Ela não teve dúvida. Levou-me a um centro espírita onde fui atendida por um médium renomado. Bem, ele perguntou: você perdeu um ente querido? Eu ia dizer não, porque não queria influenciar o médium em suas pesquisas, mas minha amiga era verborrágica e contou tudo. Aí eu pensei: ela estragou tudo, não vou acreditar em nada do que ele falar. A partir daí ele tirou de letra. Chamou o meu morto as falas e disse que ele tinha que ir embora, não deveria ficar pondo minhocas em minha cabeça, que ainda não tinha chegado a minha hora. Depois me explicou: ele está sentindo muito a sua falta e quer que você se junte a ele. Como não tem o poder de matá-la, está tentando convencer você a ir com ele por suas próprias mãos. Garantiu-me também que agora iria me deixar em paz e aconselhou-me que também o deixasse partir, não o ficasse prendendo aqui. Acreditem, eu saí de lá zombando, mas não tenho nenhuma explicação para dar. A partir daquela noite nunca mais acordei pensando em me suicidar e mesmo a lembrança dele aos poucos foi se tornando suave. Não, ela não desapareceu. Meu amigo é inesquecível. Enquanto viver, pensarei nele com carinho e com uma doce saudade. Mas da mesma forma que ele deixou que eu ficasse em paz também deixei que partisse em paz.Tenho certeza: haverá um tempo para o reencontro.