A JUSTIFICATIVA DA FALTA
Solidinha era uma aluna do Curso Supletivo de 1º grau, do turno noturno, usava óculos de lentes grossas, de estatura média, não muito gorda, morena clara, lábios grossos, tinha seus dezoito anos. Gostava de usar uma fita vermelha nos cabelos escuros. Sua aura transmitia uma ingenuidade profunda. Era uma alma vestida de carência de querer aprender e gostava de ser chamda carinhosamente, com freqüência, pelas colegas de classe e pelos professores, de: "Cidinha"
Há cerca de dois anos atrás, chegara à cidade de Salvador, para trabalhar como empregada doméstica na casa de um oficial da marinha, no subúrbio de Paripe. Nesse mesmo bairro, matriculara-se em uma escola municipal, onde conseguira aprender a ler, a escrever e as quatro operações aritiméticas, com sucesso. Com o dominio do conhecimento necessário para cursar o 1º grau do Curso Supletivo, matriculara-se no Educandário Cenecista de Paripe.
Cidinha dizia que não gostava de ser chamada pelo seu próprio nome. Lamentava-se dizendo que seu nome era muito feio. Quando nasceu, a sua "Dindinha" ( como era conhecida a parteira de sua terra natal) sugeriu aos seus pais que colocassem o seu nome de Solidonha. Pois, o "Almanaque" determinava que todas as pessoas que nascessem naqauela data deveriam ter este nome, para alcançar sorte na vida. Caso colocassem outro nome, a sorte seria cortada. Hábito muito comum em sua terra natal, os pais darem nomes aos filhos que encontravam nos "Almanaques". Era moça nascida no sertão baiano, na roça, perto de um lugarejo denominado de "Pedra Solta". Lugar que, na época das secas prolongadas, passava-se fome e bebia-se água de "caldeirões"* e das cacimbas. Em cinco palavras que falava, duas eram pronunciadas ortograficamente, incorretas. No entanto, tinha uma bonita caligrafia e escrevia com poouquíssimos erros ( por incrível que pareça!), melhor do que sua fala. O sotaque de sua voz, da sua terra natal, deixava parecer que ela falava um dialeto. Tinha uma fala cantada, arrastada e descansada. Demonstrava ser bastante inteligente, pois aprendia as coisas com rapidez e facilidade, visto que, dentro anos conseguira terminar o curso de Técnico de Contabilidade, no Educandário Cenecista de Paripe. Atualmente é uma empresária bem sucedida no estado de Pernambuco com proprietária de uma rede de farmácias.
Lembro-me muito bem quando ela estudara no Curso Supletivo do 1º grau, o que ocorrera na prova final simulada de geografia, quando faltaram três alunos e uma aluna (nessa época o aluno estudava em curso particular e fazia os exames oficiais finais em escolas estaduais). Então, o professor de Geografia, com bastante zelo e preocupação, procurou saber do motivo da ausência desses educandos. Convocou-os para que eles lhe apresentassem um motivo que justificasse a ausência na avaliação. No entanto, os três estudantes faltosos apresentaram atestado médico ao educador justificando o motivo da falta, exceto Cidinha. O professor ficou bastante preocupado com Cidinha, que era uma aluna assídua e esforçada. Então, o mestre indagou para a estudante:
- Cicinha, por que você não trouxe o atestado médico?
Cidinha, franzindo a testa, demonstrando-se confusa e não entendendo o que o professor estava querendo dizer, com bastante humildade, assim se expressou:
- E o que é atestado médico? Eu não fui ao médico. Eu fui ao dentista.
- Atestado médico é um documento emitido por um profissional da saúde, seja ele médico ou dentista; serve para comprovar as condições ou estado de saúde uma pessoa. O atestado médico determina se uma pessoa está impossilitada temporariamente de exercer as suas atividades profissionais. No seu caso, Cidinha, o dentista atestava que você estava impossibilitada de freqüentar as aulas. Através dele, você teria o direito de fazer a prova que faltou em uma outra oporotunidade. Entendeu?
- Entendi, Pró. Eu não sabia disso. Agora, eu já sei. Pró, adescupe, pelo amor de Deus! Tire a minha farta e deixe eu fazer outa pova. Não me prejudique. Por falar em pova. Quantas proguntas o senhor vai botar na pova?
- São apenas dez perguntas.
- Dez proguntas são muitas! Me adesculpe meu Pró. Dez perguntas?
- É, Cidinha, são dez perguntas, bastante fáceis para você que é uma moça estudiosa e aplicada. Diga-me uma coisa, você foi ao dentista obturar ou extrair dente?
- Eu não fui fazer nem uma dessas duas coisas que o senhor falou.
- E o que você foi fazer no dentista?
- Pró, eu fui "distrair" o meu dente, no dentista, que tava danado de doendo. Doía muito! Muito mesmo! Pró.
O professor teve vontade de achar graça, porém se conteve, tentando consertar a "distração dentária" da aluna e indagou com ênfase na palavra extrair:
- Você "extraiu" dente?
- Sim, "pró", eu "distrair" dente no dentista, e doeu muito...
O professor tentou corrigir novamente a aluna pronunciando pausadamente a palavra extrair:
- Amanhã, eu vou me distrair com meus amigos jogando bola e, depois, eu vou ao dentista "ex-tra-ir" um dente. E você, hoje vai se distrair conversando com seus colegas, e quando vai voltar ao dentista para "ex-tra-ir" o outro dente, Cidinha?
- Ah! "Pró". Eu já entendi. Me "adesculpe". Na próxima semana eu vou extrair este dente da frente. Obrigado pró! Não vou mais dizer "distrair dente" no dentista, e sim extrair. Ah! "Pró", a minha distração com o dentista era bastante ruim e fazia graça para as pessoas que ouviam.
- É Cidinha. Extrair dente não é coisa muito boa, quanto mais distraindo dente no dentista!...
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Caldeirões - É uma expressão usada pelos sertanejos para designar as águas das chuvas empossadas em buracos rasos cavados nos grandes lajedos. Os sertanejos fazem uma grande coivara em cima dos lajedos e quando o fogo amolece a pedra eles cavam.