DIANTE DE SI MESMA
Só, diante de si mesma, se olhava longamente no espelho que a lançava em um mundo feito de inversões. Ao fundo, a cama desarrumada. Nas dobras do lençol se ajeitavam os desarranjos de uma noite de insônia e solidão. As cortinas trepidavam com a brisa; despertavam desesperadamente recordações indesejáveis em sua alma tão feminina e tão sensível e tão distante.
Uma réstia de sol iluminava o porta-retrato fingidamente esquecido sobre a cabeceira. No porta-retrato o corpo do homem não permitia o abraço; inertes, os olhos denunciavam uma presença intocável. Insensível. Uma imagem plana e sem movimentos, onde apenas o tempo se movia ali, deixando na face única e máscula um amarelo indelével.
No ar pairava o perfume que os anos diluíram, mas a memória, teimosamente, não. Nem se diluiu a ilusão de sentir o leve pousar da mão nos cabelos ainda castanhos, ainda que o pouso se fizesse breve. Breve como um suspiro. Carinho frágil, sempre negado.
O espelho retratava tudo mudo e complacente. Havia nele um vácuo inconquistável. Havia na mulher um vácuo inquestionável. Uma espécie de porta se abria sem muitos ruídos, mas que não permitia a entrada do futuro nem permitia a saída do passado. Prisão perpétua.
Que falta lhe faziam agora a formatura do filho que nunca nasceu, a missa de bodas de prata que nunca aconteceu, o abraço do neto que nunca veio... Os vácuos se multiplicavam dentro do espelho. O Espelho era outro mundo. Outra vida. Outra essência. Nos vácuos que se sucediam, outra história acontecia, ainda que somente no pensamento.
Porém, o espelho também era uma imagem plana e sem movimentos que se dobrava ao inverso para amenizar a crua realidade do tempo que passou, sem deixar muitos vestígios dos sonhos jamais formatados, e tentar apagar as dores e as imagens que se perpetuam na retina cansada de olhar os inversos.
Em vão. O exagero da complacência não permitiu ao espelho notar nele a imagem inversa dos fios brancos de cabelo abraçados à escova.
Abraçados teimosamente à escova posta diante dele.