Eu não quero mais brincar

"Nunca conheci quem tivesse levado porrada

Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo (...)

Ó príncipes, meus irmãos.

Arre, estou farto de semideuses!

Onde é que há gente no mundo?"

("Poema em Linha Reta" - Fernando Pessoa/Álvaro de Campos - 1930)

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Eu podia encontrar um amigo no botequim na sexta-feira à noite para jogar conversa fora, e eu podia acender um cigarro, que eu comprara legalmente, com meu dinheiro e sobre o qual recolhera impostos, sem temer me constranger com o olhar de reprovação do chatonildo esverdeado da mesa ao lado, nem me sentir criminoso por isso.

Eu podia sair do cinema com minha namorada e tomar com ela uma garrafa de vinho no jantar, sem recear ser parado pela polícia e tratado feito bandido, ainda que crime nenhum eu tivesse cometido e ainda que eu estivesse dirigindo com dobro de cautela, como faço e sempre fiz, após beber. Os politiqueiros tupiniquins ainda não haviam trazido para a vida real a trama absurda de Minority Report, aquele filme em que o sujeito é enquadrado antes de cometer o crime.

Eu podia andar despreocupado com meu carro, pelas ruas da minha cidade, sem ter a sensação de que mil olhos me espreitam e que ao mais insignificante descuido, me flagrarão e fotografarão – e me tomarão dinheiro. Tudo evidentemente justificado pelo nobilíssimo fim de estarem zelando pela segurança pública e – claro, claro! – pela minha própria. Bons aqueles tempos em que eu deveria temer ser ameaçado, extorquido e roubado apenas pelos ladrões.

Eu podia ir ao estádio de futebol sem ter medo de topar com uma horda de moleques assassinos, desprovidos de qualquer rudimento de ideologia, valentões apenas por andarem em bandos e abrigarem-se sob a bandeira, não de um time, mas de uma falange. E lá, eu podia ver os craques da seleção em campo, porque era aqui que eles jogavam. E eram gente parecida com a gente, suavam a camisa, se engalfinhavam, saiam do campo sujos de barro, não se assemelhavam a atletas robóticos, nem se comportavam como astros da música pop.

Eu podia falar as palavras que eu quisesse e dar os nomes certos pras coisas. Eu podia falar preto, branco, amarelo, gordo, burro, aleijado, anão, retardado, rico, pobre, favelado, vagabundo, viado, filhodeumagrandessíssimaputa, sem me deparar com a expressão hipócrita dos que se importam mais com a forma do que com o conteúdo do que se fala.

Saudade que eu tenho de andar pelas ruas do passado e de entrar nos bares que já não existem mais. Saudade do Café Brasil e do Café do Bixiga, do Beleléu e do Vou Vivendo, de ouvir uma música de consistência, de encontrar gente com consistência, de conhecer e amar mulheres com consistência, do tipo que já não se conhece mais.

Tempo em que a minha música, os meus hábitos e gostos, as minhas atitudes, gestos, palavras e pensamentos não pareciam estar em desacordo com um certo senso comum, que, brotado não se sabe de onde, toma de assalto todas as fibras da sociedade, soterrando num porão de isolamento, quem com ele não compactue e que, não raro, captado pelos espertalhões que se alojam em todas as esferas de poder, sedentos por um holofote fácil, são transformados em estrambóticas leis – e o que era inadequação, torna-se clandestinidade.

E nós, que pensávamos saber o que era uma ditadura.

Vergonha que eu sinto da geração que eu ajudei a colocar no poder! Todos transformados em politicopatas profissionais, que se arvoram em paladinos das amplamente justificáveis “ditaduras virtuosas”. Quem os viu, quem os vê, meus caros! Outrora ideólogos apaixonados, hoje meros e obedientes lacaios dos verdadeiros governantes: os marqueteiros!

Eu ando ficando triste. Cada vez mais triste. E a cada dia tenho menos vontade de tentar encontrar, neste mundo de hoje, um espaço onde o meu pensamento não se sinta um paquiderme solto numa loja de cristais. Ando perdendo a paciência com essa juventude boçal, para a qual o máximo de transgressão e ousadia parece ser posar para fotos com copos de bebida na mão ou fazer uma tatuagem. Ou as duas coisas. Exceções? Sim, há. Mas a garimpagem me cansa, entedia. Dos mais velhos, dos livres-pensadores e idealistas de outrora, quase não tenho notícias. Imagino-os enquadrados e adaptados, ainda que à força. Imagino-os cultivando bovinamente seus barrigões, suas calvas e celulites, preocupados com os hábitos dos filhos adolescentes.

Certos estão eles, fora da ordem estou eu.

Eu, teimoso, renitente, que me recusei a pendurar a farda e ir para a reserva. Sobrei sozinho no meio da praça, segurando uma espada e uma bandeira – e o combate já não era meu. Os meus heróis eram outros, eram humanos. E eu não consigo me conformar com o modelo ambicionado de bom-mocismo de hoje, essa gente limpinha, engomadinha, perfumadinha, que não fuma, não bebe e não joga, parida e criada no ar condicionado, toda uma geração de Barbies e Kens, de Kakás e Sandys, que freqüentam passeatas pela paz fazendo sinal de pombinha com as mãos, que não falam palavrão, que não suam nem menstruam, com suas roupinhas de marca, suas estranhas noções de ética, seu estreito entendimento do que é democracia, seu pensamento raso, sua comidinha natural, suas camisinhas e seu medinho de pegar doencinhas.

Não tenho mais idade, nem ilusões, nem energia para supor que eu possa, mesmo que minimamente, contribuir para mudar o mundo. Não tenho sequer mais tempo para isso. Nem interesse. Todavia, ainda me resta dignidade bastante para também não permitir que ele me mude.

E não vou mudar!

Vou continuar sendo quem eu sou, comendo o que quero, bebendo o que gosto, fumando e envenenando os MEUS pulmões, com a minha música, com os meus livros, com as minhas atitudes, com meu jeito de falar, de trepar e de pensar.

O que mudou é que eu tenho tido cada vez menos vontade de sair de casa. As coisas das quais eu gosto não estão mesmo mais lá fora. Acabaram, sumiram, fecharam. Não tenho mais razões para ir procurá-las. As pessoas, em sua imensa maioria, me fazem sentir preguiça. Não estou mais querendo mover sequer uma palha em nome de uns amores mequetrefes, um sexo mais-ou-menos ou qualquer companhia que me faça sentir mais sozinho. Além do que, quase já não há mais lugar onde eu ande em que eu não me sinta inadequado, enrolando os pés nos tapetes das novas etiquetas. E isso, claro, não vai melhorar.

Eu não quero mais brincar.

Mas, para me servir não de consolo, mas quase como vingança, eu tenho meus trunfos!

Mesmo que eu passe isolado o resto dos meus dias, sem nada mais realizar e sem apontar o nariz para além do batente da porta – ainda assim – eu terei acumulado mais histórias para contar do que a grande maioria dos meus conhecidos: e falo de viagens e de madrugadas longínquas, de ter visto a história acontecendo diante do meu nariz, falo de fatos e coisas e de sensações que experimentei – e que só experimentei porque sempre fui assim, exatamente assim, feio, sujo e malvado, desbocado e desregrado e porque nunca tive medo de pegar resfriado. Na matéria “amor & sexo”, eu cheguei mais longe do que poderei um dia traduzir em palavras, o que, se por um lado justifica a minha indolência em relação aos simulacros de romance de agora, por outro me reforça uma certeza – e outra vingança: eu amei no tempo em que amar era algo que valia a pena!

Enganar-se-ão também os que alardearem as enormes vantagens dos novos tempos, os milhões de novos e modernos recursos que hoje existem, achando que um cidadão praticamente pré-histórico não há de saber sequer como tirar proveito disso. Pois tudo o que há de bom, tudo que presta, todas as ferramentas úteis à disposição neste século estranho, eu aprendi – sim! – a manejar!

E é também por isso que eu posso passar o resto da minha vida no meu universo particular, na minha caverna com banda larga. Entendi faz tempo o que é Home Office e quase já não preciso sair de casa para ganhar o meu brioche de cada dia.

Não vou mais ao cinema. Espero que os filmes sejam lançados em DVD. Os compro pela internet. Eles entregam aqui na minha porta, embaladinhos. Se eu pedir, até pipoca de microondas mandam junto. Os livros também chegam assim, não preciso ir lá fora comprar. Meus pratos favoritos, meus vinhos: delivery! Pay-per-view, pra que te quero: futebol, com direito às entrevistas coletivas dos técnicos e mil tira-teimas.

Não vou mais à shows ver meus artistas amados, essa gente quase sobre humana que guiou o rumo das minhas sensibilidades pela vida toda. Já estão mesmo quase todos eles sessentões, em fim de carreira. Assim como eu. Espero que alguma alma caridosa envie vídeos para o Youtube, pra que eu possa matar as saudades. Tanto faz que sejam vídeos novos ou antigos. Na verdade, até prefiro os antigos, me dão a ilusão de que o tempo não passou, que eles estão jovens de novo, de que eu também estou.

Falo com o mundo inteiro e o mundo inteiro pode falar comigo: tem Skype, tem MSN, tem blog pra eu continuar contando minhas lorotas. Tem web cam. Um dia desses, um nerd esverdeado, engomadinho e não-fumante vai viabilizar a utilização de um programa capaz de fazer com que a imagem tridimensional seja captada e transmitida com perfeição, vai ser praticamente como estar na presença de quem se quer ver. E eu vou ter isso também.

Vejo tudo daqui, centenas de canais. Só evito os noticiários e os programas de entrevistas, de atualidades. Não quero saber! Política? Rá! Quero que todos eles se matem uns aos outros! Para que eu vou me preocupar com o rumo de um mundo que já não me interessa e a qual eu já nem pertenço?

Ergo aqui as minhas trincheiras, minhas barricadas, meu auto-exílio. Será um ato de heroísmo para quem assim souber ver. Um ato de resistência heróica. Resistência, não rendição: se o mundo me transformou numa peça de museu, assumirei então essa condição, mas com brios.

Os estudantes universitários que desejarem minhas memórias como tema de suas teses e os que quiserem me pesquisar sob os pontos de vista sociológico, histórico ou médico, eu receberei com cordialidade – mesmo porque, sei que eles estarão entre os poucos com quem poderei praticar, sem culpa, uma das coisas que na vida mais me deu prazer: falar. E falarei, ainda que esteja ciente de estar diante de ouvintes, digamos, “profissionais”.

O meu baú de recordações de ex-músico, ex-boêmio, ex-mochileiro, ex-militante, que assumiu por livre escolha a condição de ex-cidadão, estará disponível para visitação, desde que com autorização prévia e hora marcada.

Às pessoas que ainda me amam, e às que ainda talvez me amem, eu abrirei a porta sempre que quiserem me ver – e as receberei, sim, com alegria, a casa limpa, com café e biscoitinhos. Perdi a vontade do mundo, não a educação. Mas isso, desde que não me queiram depois puxar pela mão e me levar para fora. Desde que estejam cientes de essa foi minha opção.

O mundo estará – segundo o senso comum – mais seguro sem gente como eu, circulando pelas ruas.

E aqui, eu não posso causar mal nenhum.

A não ser a mim mesmo.

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