O louco e eu
 
Todas as crianças da minha meninice conheciam Alô. Era , diziam, um louco. Muito negro, tão negro, que brilhava, não sei se de suor ou devido a sua cor. De branco mesmo só tinha uma bela carreira de dentes e a esclerótica. Nunca o vi com camisa. Vestia sempre uma calça, que parecia ser a única que possuía, cinza, bem folgada, cuja cintura enorme era amarrada com um cinturão muito velho, ou uma tira de pano, não sei. Nem sei onde morava, ou dormia, se é que dormia, talvez sob os bancos da pracinha, em frente da minha casa.
Era visto diariamente nas redondezas, rondando pela praça, descendo e subindo quarteirões, balançando os braços, conversando com seus botões em voz alta, ou correndo. Corria muito, atrás dos meninos que o provocavam. Com pedras e pedaços de pau lá ia ele, debandado, jogando o que tinha nas mãos. Mas nunca se ouviu dizer que fez alguma maldade com quem quer que fosse.

Em uma certa manhã, estava sentada no batente da porta, lendo uma revistinha, talvez de Gato Felix, quando vejo lá em baixo, vindo em direção da rua, Alô. Antes que ele chegasse à esquina, levantei-me, bati a porta e corri o longo corredor até chegar à despensa, onde estavam minha mãe e Duzinha, minha avó. O coração aos saltos.
- O que é isso, menina? Perguntou mainha.
- É Alô, o louco, ele está correndo, vem pelo passeio daqui.
- Volte e sente onde estava. Ele não vai fazer nada com você. Não tenha medo dos loucos, só quando são perseguidos eles ficam bravos. Volte!
Voltei, sentei no batente. Alô estava nesse instante a duas casas antes da minha, ofegante e com um largo sorriso demente na boca. Passou por mim, sorriu ainda mais e continuou correndo.
Minha mãe estava escondida na “sala de visitas” , olhando pela fresta da janela (eu não sabia) e, de repente, estava do meu lado.
– Ele já passou?
- Já sim, mainha
- Fez alguma coisa com você?
- Não mainha, só sorriu.
- Não lhe disse? ...


Alô sumiu, eu já era adolescente, ninguém falava dele. Deve ter morrido na rua, que era sua casa. Hoje, fico imaginando: já não existem loucos donos de uma rua, já não correm pelas ruas jogando pedras e paus nos meninos. Já não existem portas e janelas abertas e criancinhas no batente lendo gibis. Mas existem outros Alôs de terno e gravata, carros e motos atacando física e moralmente as pessoas. Esses sim, são loucos.
 
Aprendi com sete anos que nos relacionamentos, damos o que recebemos.
::

IMAGEM: Coreto da praça, perto da "casa da infância"