RECORDAR É VIVER

Como o veredicto dado ao final do julgamento, assim, é a crítica àqueles que se atrevem a se colocarem perante o público. Ao contrário do primeiro que sempre terá a possibilidade do recurso, aos seguintes apenas lhe é reservado o direito ao conformismo, ou seja, o corpo de jurados do primeiro caso poderá, como seres humanos que são, com personalidades e indiciocrasias ímpares, julgarem segundos preceitos implantados numa idade ainda tenra. Os jurados do segundo grupo, necessariamente, já terão chegado à idade em que a razão já deve predominar às opiniões.

Imbuído dessa assertiva, quem agora a vos se dirige, pede passagem, não para convencê-los da sua certeza, apenas o faz apoiado no desejo sincero de compartilhar experiência há muito vivida e, considerado o tempo transcorrido tentará, não colocar os fatos na ordem ocorrida, pois, além de impossível, o que se vai ler, mais do que memórias compartilhadas, parecerá lista de supermercado onde a cada item colocado no carrinho, um X será feito como bem adquirido.

E já que não estamos num supermercado, permitam-me companheiros leitores, atraí-los para os fatos que passo a narrar. Portanto, sem querer esticar mais a introdução, tornando o que se quer dividir um presente de grego, decolo do aeroporto da imaginação, minhas memórias.

Era uma manhã chuvosa típica de outono. O ano era 1985, saí para o trabalho como já fazia há cinco anos. Parecia que aquele dia seguiria sua rotina quase que programada, pois como nos outros, o ônibus não chegou no horário, o trânsito não estava nem um pouco mais rápido, os jornais não traziam notícias animadoras, enfim, tudo contribuía para ser um dia igual a tantos outros.

Assim como diz o ditado “um dia após o outro”, acrescento que nem todos são realmente iguais. E foi dessa forma que aquele dia se apresentou. A meio trajeto para chegar ao destino, sobe no coletivo um senhor. Considerando seus passos lentos e sua cabeleira totalmente branca, supus que estivesse próximo dos 80. E sem uma aparente razão, aquele senhor se pôs a falar do tempo em que tinha vinte anos. Dizia ele que na sua época as pessoas eram mais educadas, os homens mais cavalheiros e as moças mais recatadas. A princípio alguns começaram a esboçar caras de riso, mas diante da reprovação, calada, de outros, todos passaram a prestarem atenção àquelas palavras. E o que poderia ser uma viagem cansativa, tornou um prazeroso percurso, pois, além das observações inicialmente feitas, aquele senhor enriqueceu sua narrativa com a lembrança da época do bonde. Segundo ele, a Rua Direita tinha esse nome porque as pessoas, para não se trombarem, “dividiram” a rua em duas mãos, de modo que cada grupo, ao tomar seu caminho, ficava na mão a sua direita. E, ainda, que onde hoje é a estação Sé do metrô, era o local onde se situava um conjunto de prédios conhecido como Palácios Mendes Caldeira, nome de uma importante família dos tempos do café. E que na Catedral da Sé, estão os restos mortais do índio Tibiriçá e do padre Diogo Feijó. O índio, por ter sido o primeiro a ser catequizado pelos jesuítas e por ter contribuído para a “humanização” dos demais e, também, por ter o local da sua oca, escolhido par ser o local onde se ergueu o Colégio São Bento. Já o padre Feijó, por ter sido uma das principais personalidades responsáveis pela administração do império, quando se instalou aqui uma junta, antes da posse de D.Pedro II, e que renunciou quando aqui se deu o que se convencionou chamar de Golpe da Maioridade. Por esse expediente, antecipou-se a maioridade do príncipe regente, para 14 anos para governar, iniciando o segundo império, posto que seu pai, D.Pedro I, voltara para Portugal, Pedro II, tinha somente 09 anos.

Então, caros leitores, se o que foi não correspondeu às expectativas, não os culpo. Ao contrario, o que ao fim chega, não se deve somente à falta de coerência, pois, tendo já transcorrido demasiado tempo, e ciente de que fatos há muitos ocorridos, tornam-se presas fáceis para a confusão que pode se instalar, adiciono aqui, meus reais agradecimentos, pois como aquele senhor, não desfruto mais dos meus vinte anos. Já em relação ao que acabo de tornar público, confesso que o fiz apenas tendo em mente que se naquele dia, que tinha tudo para ser um dia como tantos outros, tive o privilégio de ouvir tais histórias, posso afirmar que ouvinte que fui, fez-me guardião de fatos contados, não em segredo, e por isso posso dividi-los, que certamente fez daquele dia especial. E se hoje aqui deixo o que outrora estava apenas na memória, submeto-me ao veredicto que a vos coloco a causa.

É isso.

silvio lima
Enviado por silvio lima em 13/06/2009
Código do texto: T1646432
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