RODELAS, FOI A SAUDADE QUE ME TROUXE AQUI.
(CAPÍTULODO ROMANCE INÉDITO “A COLONIZAÇÃO E O MASSACRE”).
Estamos no ano de 2006. Cristóvão de volta ao Rio São Francisco. Parada inicial, Rodelas. Coincide sua presença com o dia da última novena da festa de São João de Rodelas. Ouviu histórias e lendas, impressionou-se. Ficou mais uns dias. Queria conhecer não só a festa. Também as peculiaridades locais, os costumes da gente, o ambiente.
Admiram-lhe a simplicidade e a beleza da gente, o folclore. Ao cabo da festa fez este registro em suas anotações de viagem:
"Rodelas, foi a saudade que me trouxe aqui”, as pessoas diziam ao abraçar-se – gente dali, que residia fora. O São João de Rodelas é um espetáculo no qual se vê de tudo. Começa pelo fato de que todo mundo é parente de todo mundo. Inclusive o índio. O africano também. População pequena no início da colonização. Meia dúzia de colonizadores brancos, dois ou três escravos. O habitante primitivo, só este em maior quantidade. As três raças se cruzaram no correr dos séculos. Parece que todas as pessoas têm o mesmo sangue. O branco puro, do tipo alaranjado português, quase não se vê. O pretinho, preto retinto, não se faz presente. E o índio sem cruzamento, é raríssimo. Cara larga, cabelos pretos na mais avançada idade, finíssimos, o nariz chato, alargado, onde está o nativo cariri?
Ia-me referindo ao cruzamento das raças e ao espetáculo, só o que interessa aqui. Prevalece, de ponta a ponta, o moreno, do claro ao escuro e o mulato. Raça de heróis do sertão catingueiro. Lá está um casal rolando na pista de dança. Mulata ela, ele moreno aclarado. Grudadas as pernas, ela mostra a bunda num Jean coladinho. E balança pra lá e pra cá. Dá para entender que comanda a parte. Rodam danadamente, rodopiam e rodopiam bem, rodopiam belezamente. Muitas morenas e mulatas entram na pista. Adiante um negro. Só um. Muito preto, cabelos brancos, o largo bigode, vestindo um terno branco, usa gravata vermelha. Só ele de roupa branca e só ele de gravata em toda a festa. E parece dançar valsa, sem se incomodar com o compasso de samba. Sabe transformar música de samba ou frevo em valsa. Uma coisa extraordinária. Gente branca não aparece na pista de dança. Só sentada chupando a sua lourinha.
Na mesa ao lado da minha, dois padres. O pároco local e o de São Pedro da Aldeia, convidado para concelebrar naquela noite. Já fizeram a concelebração da igreja. Agora é a confraternização da lourinha e das mulatas. De fato, enquanto os dois bebem sentados, duas mulatas fornidas, estão em pé, ao lado, cada qual com o seu copo. - Vidona, sopro intimamente. Levanto-me e me dirijo aos vigários. Os dois são jesuítas.
- Boa noite, padres - cumprimentei. Vidona, bonita festa, não padres!
Deu para notar que eles se assustaram e ficaram visivelmente constrangidos como os cumprimentos naqueles termos – vidona – e torceram o rabo dos olhos para as duas mulatas, cada qual com o seu copo de cerveja, em pé ao lado deles.
- Padres – continuei, vendo os senhores festejar me lembrei do célebre colonizador/curraleiro Domingos Sertão. Andei pesquisando sobre ele nestes dias. O cara trabalhou bravamente. Morreu aos 97 anos. Não teve filhos, nenhum herdeiro legal. Quando foi aberto seu testamento, encontrou-se que deixava como herdeira universal, sua alma. Quis que esta subisse ao céu sem problemas. Passou todos os bens aos jesuítas - 40 currais com 40.000 cabeças de gado, desde que a Ordem assumisse o compromisso de fazer celebrar, por todos os seus padres no mundo inteiro, três missas por mês cada um destes, em sufrágio da herdeira universal - sua alma e todos os irmãos, por igual modo, rezassem cada um três ofícios, até o fim do mundo. Os jesuítas aceitaram o oferecimento, assinando o termo o Geral da Ordem.
Aí parei, respirei, e fiz o arremate:
- Como o mundo ainda não se acabou e a ordem dos jesuítas, ainda existe, essas missas e esses ofícios devem estar sendo rezados?
O padre de São Pedro da Aldeia abriu os braços e concordou:
- Pois é, o senhor diz uma verdade histórica. Ainda hoje rezamos pela alma do benfeitor Domingos Afonso Sertão. Agora, agora mesmo acabamos de lembrar seu nome na missa, o senhor não ouviu?
O espetáculo do São João rodelense começa na igreja, à hora da novena. O Benito Marculino e as moças do coro. O Benito uma figura extraordinária. É o coordenador e a alma da festa. Ninguém a faria igual. Mais que isso. É a alma da prefeitura local. Assessor para assuntos culturais vem, de muitos anos, naquela função, passando tranquilamente de administração para administração. É um homem de cabelos brancos, por volta dos sessenta anos, que começou moço e lá está realizando as mesmas tarefas. Comanda mais do que o prefeito. Mais do que o vice até, este que é maior que o chefe do executivo. O vice é outra figura! Alto funcionário do Tribunal de Contas Brasiliense, cargo a que o levou o conselheiro Pateta murmura-se o receio do administrador, de que ele prepare lá em cima sua caveira. Certinho, certinho ninguém anda nunca. Daí o receio.
Ia dizendo que o espetáculo começa na igreja. O Benito, sapato de salto alto, taxas de metal no solado, vai do coro, ao lado do altar, à porta de igreja duas, três, quatro vezes, ploc, ploc, ploc, ploc. No coro as moças do canto e das orações musicadas. À porta da igreja, do lado de fora, o pessoal da entrega das oferendas e da bíblia. Orienta este, orienta aquele, o Benito vai e volta - ploc, ploc, ploc, ploc. Chega à hora das orações. A Socorrito, segunda alma de tudo, vestida numa vistosa paramenta de Nossa Senhora dos Milagres, sobe ao microfone e lê. Lê bonito, comoventemente a oração. Uma outra do coro que não se identifica bem, lê a oração dos apelos. Vem afinal o Benito e faz o elogio de São João, da festa, do prefeito. Ah sim, do prefeito, pois não. E do vice também. Uma perfeita e bem feita oração à grandeza do administrador. A Socorrito entra segunda vez para fazer a apologia da fidelidade e da honestidade no serviço público.
Agora entra o padre para o intróito. Inicia: "introíbo et Altaire Dei". Aí vai intercalando missa e novena. A certa altura é a elevação das bandeiras. A Bandeira do Brasil vai içada pelo Vice. A bandeira da Bahia pelo único ex-prefeito vivo. A Bandeira de Rodelas pelo prefeito. Muito bonito. Por aí assim, nessa homenagem à pátria, ao estado e ao município, o padre, do lado de dentro do altar, grita ao microfone: viva São João! O povo em coro - Viva São João! - Vivam os visitantes! - Vivam os visitantes! Viva a esse, viva a aquele... Um gaiato grita a toda voz do meio da igreja - Viiiiva Rodeeelas! E o povo se entusiasma e responde vibrante - viiiivaaa! O padre surpreendido pela intervenção, meio pasmado repete: - Viva Rodelas. O povo, agora, cheio de brio, confirma um sonante viva Rodelas.
Terminada a missa/novena, daí mesmo as pessoas saem para a quadra de esporte Dr.João Soares, aonde se desenrola a festa propriamente dita, isto é: o beber e comer, dançar, esbanjar alegria. Uma coisa extraordinária. Mais belo que isso, dizem os locais, só o carnaval de Salvador no circuito Farol da Barra/Ondina. A partir da igreja, seguindo no sentido da quadra e nesta internamente, as bandeirolas pendentes, lá no alto, balançando ao vento. Uma fartura de cores: verde, amarelo, vermelho, azul...
À entrada da praça, o painel memorizando a antiga cidade, que a Barragem de Itaparica engoliu. Bonito trabalho, boa reprodução. Reconhecem-se as casas da velha cidade, a ponto de elevar o dedo - essa é a casa de tio Né Justino, essa a de Sinharinha, a casa de Honorina, o sobrado da escola de Dulcina... No interior da praça as barracas espalhadas dos dois lados em toda a extensão. Primeiro as de comida. Tem de tudo: milho assado, milho cozido, pamonha, canjica, pipoca... Quanta pipoca! E o caldo de mocotó! Uma gostosura para quem está bebaço. O pessoal chama “caldo a Tõe de Euclides”. A carne de bode no espetinho. Um sal... Esta é chamada “carne à negro Otacílio”. Vêm a seguir as barracas da cervejinha. Como o pessoal gosta da loira! Repita-se o dito local: Só no circuito Farol da Barra/Ondina, no Carnaval de Salvador, se vê festa de rua maior que esta. Como bebe a moçada!
O dia 24. A procissão, a missa campal. Os bancos da igreja postos do lado de fora, no pátio em frente à nave. Vem o bispo diocesano na sua paramenta solene. Segue à frente da procissão e puxa as orações. Muitos benditos, orações cantadas. O hino do São João Glorioso. Bela e emocionante a procissão. Quando se aproxima da igreja, o povo larga a fila e corre a se sentar, cada qual buscando o espaço que não dá para todos. E começa a missa cantada pelo bispo acolitado pelo pároco. As mesmas orações, as mesmas louvações, os mesmos aplausos. Já agora, na hora dos vivas, o padre, atento à lembrança do gaiato, grita um viva a Rodelas. O povo aplaude.
A festa vai acabar-se. Depois da missa uma pessoa oferece à venda as camisas da recordação. O pessoal corre cada qual a pegar a sua: "Rodelas, foi a saudade que me trouxe aqui". De fato, quando é São João a saudade bate. E vem gente de Salvador e de Recife, do Rio e de São Paulo, até de Londrina, no Paraná. De Porto Xavier, no Rio Grande do Sul, aqui estou eu... Gente de Senhor do Bonfim e Campo Formoso, de Juazeiro e Petrolina, de Paulo Afonso, de Belém do São Francisco... De todo lugar. Todo mundo é parente de todo mundo, sangue dos desbravadores do século XVII cruzando-se e recruzando com o negro e o nativo. E todo mundo vem matar a saudade. Não chegam as camisas para todos. É realmente a saudade batendo no coração daquela gente.
Dia 25 de manhã a despedida dos que vieram de fora. – “Até o próximo São João! Não vai faltar, em primo" - “Até o próximo São João, primo. Garanto que não falto, é a saudades que nos trás aqui".
* * *
Afinal chega o dia do retorno aos seus pagos. Tinha material bastante para iniciar o idealizado trabalho de resgate de seu passado. Buscaria mais no futuro. Ao descer do avião em Santa Rosa, foi recebido com regozijo, diria melhor, com euforia pelos amigos, felizes do seu retorno nas andanças no Nordeste. Estava-se na última semana da grande festa universal, que é a copa - campeonato mundial de futebol. Para começo de farra uma recepção no clube recreativo de sua comunidade, no Bairro Luiza Alves. Um conjunto local brilhando no palco. A apresentação da festa e distribuição dos brindes a cargo da bela e simpática radialista Elizabeth - rainha do rádio local. Foi levado a sentar-se à mesa do casal Bruno Alves, ele irmão da Luiza Alves. Presentes aí a filha do casal, poetisa Adriana, um seu irmão menor e a professora Maria Izabel. Um jantar puxado a vinho e muita cerveja, serviço a cargo do mestre Emanuel Elesbão. Ao ser apresentado ao senhor Bruno, este, sabendo de sua viagem, pergunta:
- Está vindo da Bahia? - Ouvindo a confirmação, vai adiante:
- Por acaso está interessado no cultivo da soja? Foi ver Barreiras?
- Não, meu interesse é outro, sou pesquisador e estive colhendo informações sobre um ramo dos meus antepassados, que veio da terra baiana.
- Aaah! Pensei. Os nossos cultores de soja, apesar das ótimas terras de Santa Rosa estão de rota batida para esse lugar – Barreiras. As terras são tão boas quanto as nossas e têm um custo de menos de metade. Estou em negociação com uma gleba por lá e conforme a resposta vou ver isso.
Dia seguinte outra festa, agora da - CAPOLAT SANTA-R0SA, comandada pela presidente Maria Izabel, no seu jeito especial de menina moça escondida nos quarenta anos. Cristóvão estava patrono da festa e recebeu um bonito troféu. Distribuição de troféus aos premiados no recente concurso de poesia, declamação e canto, lançamento da coletânea com os poemas premiados no concurso e trabalhos dos acadêmicos. Uma belíssima representação teatral supervisionada pela coordenadora do grupo de teatro local, a simpática atriz Maria Inez. Muito bonito. Aqui a apresentação e o protocolo estiveram a cargo da chefa do cerimonial, vice-presidentes da CAPOLAT, Luíza Alves. Ao seu lado a presidente Maria Izabel exibindo o sorriso de alegria e orgulho, comandou a distribuição dos prêmios e troféus. Um brilho a que não faltou a presença da TV Globo filmando a solenidade, entrevistando os premiados, a presidente e o homenageado. Para fechar a festa um jantar oferecido por Cristóvão aos intelectuais, aos premiados no concurso literário e aos seus amigos da Comunidade Luiza Alves. A Luíza irradiando simpatia.
A beleza e a grandiosidade nunca vistas em Santa Rosa, talvez em nenhum lugar deste país de Deus, foram no dia seguinte. Último jogo do campeonato mundial. Para o Brasil, se vitorioso seria o tetra. E deu que encontrou pela frente justamente outro tri campeão, a Itália. Feriado nacional. O país inteiro em suspense. Dois duros tricampeões na disputada do tetra. Telões de TV em pontos estratégicos da cidade de Santa Rosa, o povo indo e vindo, todo mundo impaciente, todo mundo conversando, conjeturado, palpitando sobre os gols da vitória. A vitória, essa era certa. Na boca do povo, unanimemente, era certa. A diferença estava no palpite. Dois a três, dois a zero, um a zero... Telões de TV espalhados na cidade. Uma razão simples – o futebol é a festa do povo, sua distração maior. Outra razão, esta especialíssima: Era a copa mundial e no arco estava o santa-rosense Taffarel - orgulho do Brasil, glória da cidade da Xuxa.
E foi duro realmente. O jogo trancado dos dois lados, todo mundo marcando todo mundo. Esgotado o tempo estava-se zero a zero. Iam para a decisão dos pênaltis. O Brasil furou o goleiro italiano três vezes e deixou a bola passar duas vezes. Três a dois. Agora a última e decisiva jogada. Empatando ir-se-ia para o sorteio. Nas arquibancadas de Rose Bowl, Pasadena, a torcida, aliás, o povão da torcida dá berros, urros de ensurdecer o mundo. No Brasil, em frente à televisão cada um em sua casa, os gritos soam histéricos, puxados a cerveja. Nas ruas de Santa Rosa, em frente aos telões, aí sim, é que é entusiasmo. O povo vibra e caminha impaciente de um lado para o outro, cada um com sua latinha na mão. Só se ouve um nome Taffarel. Todos atribuem a ele o título de figura maior da seleção. E é mesmo. Suas mãos e pernas prendem a bola com a facilidade e a segurança, a tranqüilidade do goleiro maior do mundo, fato conhecido no Brasil inteiro, em todo o orbe, aliás.
Dono da pelota um homenzarrão importado sabe-se lá de onde. Taffarel posicionado no meio do arco. Do alto falante de onde irradia o jogo, Galvão dá o berro de alerta:
- Aí Taffarel, esta é sua! Segura! Sua será a vitória! Segura, Taffarel, segura essa, o Brasil depende de suas mãos, de seu pulso de menino gaúcho!
O homenzarrão da bola, olho em Taffarel como se pretendesse hipnotizar, faz gestos de lançar e não lança. Um gesto, mais um gesto, mais outro... A pelota vem com a força de um bólido para a esquerda. Taffarel inclina-se para o seu lado e num vôo rápido, segura-a com as duas mãos, cai e se levanta rápido. Bravo, heróico, vivo como um semideus, a bola segura pelas duas mãos, ergue-se para o alto com os braços elevados na atitude mais bela do atleta. O árbitro apita. Estava concluído o jogo, o Brasil tetra campeão. Os craques brasileiros abraçam-se chorando, enquanto Galvão grita histérica e repetidamente: Viva Taffarel! Viva Taffarel! Viva Taffarel! Taffarel! Taffarel Taffarel!... Vêm, todos os jogadores, de braços dados para o abraço do arqueiro. Todos choram e riem ao mesmo tempo bradando:
- Brasil! Brasil! Brasiiil! Ililil...
Do alto-falante Galvão repete: - Brasil! Brasil! Brasil!
As arquibancadas não vêem abaixo porque são construídas a concreto armado. A gritaria é uma loucura. Uns gritam de satisfação, muitos de desgosto urram. No Brasil - em todo este rincão de Deus, em toda sua imensidão, diga-se melhor, o foguete explode e o povo sai às ruas em carnaval.
Santa Rosa, em um primeiro momento parou silenciosa pasmada, hipnotizada. Em seguida, como se acordasse de um pesadelo explodiu em uma gritaria de ruas loucas. Não ficou ninguém em casa, ninguém. Os poetas, o prefeito, os vereadores, os diretores de escolas e professores, o povo somado. Da gente mais simples a mais responsável, até os policiais dançando, pulando pelas ruas aos berros como irmãos siameses: - Brasil! Brasil! Brasil! Taffarel! Taffarel! Taffarel!
Não era o ídolo apenas, naquele momento tinha a dimensão de um deus. Não somente em Santa Rosa, no Brasil inteiro.