Retrato fiel

Invento em você uma extensão diferente, na contramão do que sou, por cima dos controversos contornos que me revelam igual. Por você, assim, me exponho com outra exatidão: não mais do esboço borrado, meio apagado de tanto ser visto, mas dos traços frescos, imprevistos em que ressurjo do teu borrão.

Porque te reconheço facilmente o meu retrato mais fiel, neste instante, neste agora, neste mundo, em cuja brusca presença volto a encontrar-me, compartilho a surpresa de outros ângulos, como se estivesse eu fora de mim ao deparar-me com a imagem tão nítida de minha alma em teu semblante.

A mesma história contada de outra forma não é a mesma história. Você me deixa à vontade em novos trajes, refigurado sem ter renascido, impregnado do ar puro que sorvo em seu louvor. Nem ligo se te chamam versão de antigo vício, se és a perfeição da trama aflitiva que parece findar com teu sorriso.

Você me conduz por caminhos conhecidos a lugares há muito esquecidos. Atravessamos parques públicos como se estivéssemos em labirintos, descobrindo atalhos, andando em círculos, achando a saída lentamente. A ansiedade do passo vai embora, na diversão garantida pela experiência duplicada: sabemos que não somos um, mas sentimos que não somos dois... E nessa hora fundamos uma espécie de consciência dupla.

De ausência dupla também. Fujo de mim e do mundo através de ti, sob a tua sombra me abrigo do engano e da dor do sol a pino. É outra a lucidez que me ofertas, é outro o brilho descido desse olhar que me conforta. O desejado encontro da segurança com a paz move-me na tua direção.

Utopia em carne e osso, você destrói o que me destrói, preenche o que me corrói, acende o que me ilumina. Lança-me fora do tempo, liberta-me o corpo do cárcere, recupera-me do desencanto de uma identidade perdida.

A necessidade da utopia é tamanha que chego a tomar a existência por uma referência estampada na tua face, um rastro invisível nos teus gestos, o alvo certo de todas as tuas ações. Da essência que te fiz, retomo o barro de que te faço, desenho-te à minha semelhança.

Será que me inventas na contramão do que és, sobre contornos apagados de tanto vistos? Serei o teu retrato fiel, neste agora, neste mundo?

Fábio Lucas
Enviado por Fábio Lucas em 02/05/2009
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