A Grávida

A GRÁVIDA

Embora a vida também se revista de acontecimentos fortuitos, não costumo dar bola às coisas que acontecem no repente das horas. Sei que num piscar de olhos ocultam-se surpresas que, como se sabe, podem se revelar ingratas. Por isso não faço da premeditação uma regra a ser cumprida. Nunca acordei pela manhã imaginando o cardápio do almoço. Não sei exatamente onde guardo minhas coisas e nunca me visto antes do armário ser aberto. Desde cedo aprendi que o blusão pretendido na véspera dificilmente estará disponível no cabide. Estará no varal, no cesto ou perambulando pela casa na boca da Marrenta.

Outro grave perigo são as vontades grastronômicas repentinas que emergem, sabe-se lá de que entranhas. Quem nunca se viu perguntando à mãe ou à esposa: “sabe o que eu comeria agora?”. E o futuro do pretérito é, nessas horas, perfeito, pois no fundo de nosso desejo, esconde-se a frustrante desconfiança de que o indispensável ingrediente não estará disponibilizado para uso imediato e jaz nas prateleiras do supermercado que já fechou. Assim, ficamos com água na boca. Esfumam-se sorvetes, bolos, brigadeiros e outras iguarias que nos torturam e nos deixam na saudade.

Se esse desejo nos chega aos ouvido na forma de admoestações gravídicas, então não temos saída. Trocamos de roupa e nos atiramos à rua rumo ao desconhecido Serão sempre horas insólitas em que estaremos condenados a uma peregrinação cheia de percalços. Cada simples transeunte será um perigoso ladrão que nos espreita e vice-versa. De susto em susto, teremos sorte se não estiver chovendo. Estaremos sendo guiados por Deus se, na única loja aberta num raio de zil quilômetros, encontrarmos pelo menos o genérico do obscuro objeto de desejo da santa esposa que nos aguarda de camisola.

Retornamos triunfantes, certos de que nosso rebento não nascerá com nariz de pitanga ou boca de carambola. O pequeno embrulho em nossa mão parece encurtar o caminho. Chegamos ao aconchego do lar e batemos em direção ao quarto. A mulher nos recebe sorridente, orgulhosa de nosso feito heróico numa nítida prova de amor. Abre o pequeno embrulho, olha a guloseima e desaba:

Sabe o que eu comeria agora? Sorri meio sem graça.

Um frio percorre-nos a espinha. Sentimos a paciência ameaçada, mas ela nem nota:

Um pão com ovo... a gema bem molinha... hum!!!!

Ela sorri. Olha-nos com ternura e dirige-se à cozinha. A guloseima fica sobre a

mesinha de cabeceira. Deitamo-nos convencidos de que, decididamente, surpresas sempre terão o seu quê de enganoso ou ingrato.

Aldo Guerra

Vila Isabel, RJ.

Aldo Guerra
Enviado por Aldo Guerra em 13/05/2006
Código do texto: T155543