VINTE E UM DE ABRIL …
Há alguns anos esta data tornou-se problemática para mim. Lembra-me perda, dor, sofrimento. Há quinze anos perdi um cunhado, vítima de um traumatismo craniano provocado por uma queda. Oito anos depois eu e meus filhos sofremos um grave acidente de carro quando retornávamos de Natal, praticamente no mesmo horário do outro acidente. Claro que são coincidências. A razão sabe disso, mas a emoção só consegue lembrar aqueles momentos dolorosos.
Quando acordei, após o acidente, estava sendo conduzida para o hospital por um estranho, meus filhos tinham sido socorridos primeiro. Não sabia que meu pesadelo apenas começava, não podia imaginar os momentos difíceis que me esperavam. Ao chegar ao hospital fui recebida por olhares curiosos e imediatamente me conduziram ao local onde estavam meus filhos. Saulo segurava a mão de Omar Jr. e veio ao meu encontro. Um mal-estar horrível e uma dor latejante na cabeça me impediam de entender o que estava acontecendo. O médico me disse para ser forte, tudo estava encaminhado. Agora era com Deus. Omar Jr., em estado grave, estava inerte sobre uma maca fria e foi conduzido a UTI.
Senti-me perdida, rodeada de estranhos que me perguntavam coisas que eu não sabia responder. Saulo, apesar da pouca idade, conduzia a situação, dizia a quem precisava avisar, respondia aos questionários sem fim do hospital, falava com os que se aproximavam. Eu parecia não fazer parte daquele cenário. A imagem de meu filho ferido e com aquele olhar sem vida estava gravada em minha mente como uma ferida feita a brasa. Sofria, mas era um sofrer diferente, sem lágrimas, sem dor, apenas um vazio enorme. Estava atônita. Ou catatônica, não sei.
Precisava avisar a Omar. Liguei e avisei que estávamos feridos em um hospital. Não disse mais nada. Desliguei. Avisei a minha cunhada que sofrêramos um acidente. E sentei-me. Esgotada, desnorteada. Encaminharam-me para sala de pequenas cirurgias, precisavam pontear o corte que sangrava em minha cabeça, deixei-me conduzir. Avisaram-me que Omar Jr. precisava ser transferido, que ali ele não teria chance de sobreviver. Começaram os procedimentos de transferência.
Pouco a pouco chegavam amigos, familiares, médicos de outros hospitais, pessoas que Omar, por telefone, pediu que fossem ao hospital saber o que estava acontecendo. Todos tentavam me confortar. Não havia conforto. Só um vazio imenso. Um silêncio que não encontrava lágrimas nem palavras. Um olhar perdido que não via nada em volta. Sentia a mão pequena de Saulo entre as minhas, ele, com a cavícula quebrada, me dizia para não ter medo que ia ficar tudo bem.
Viajamos para capital, de onde havíamos saído no final da manhã. Senti medo... Lá fomos recebidos por um batalhão de médicos, ortopedista, neurologista, oftalmologista, cada um analisava a parte do corpo de meu filho que lhe interessava, entreolhavam-se, davam explicações aos estudantes que os acompanhavam. Meu menino era só um corpo ferido que os ajudaria a aprimorar seus conhecimentos... Eram muitos os exames, todos pareciam querer tocar, olhar, mas ninguém me dizia nada, pareciam robôs a repetir: tenha paciência, estamos examinando, não podemos dizer nada ainda.
Ele não reagia; inerte se deixava manipular. Era coma semi-consciente, diziam os médicos, não havia fratura, mas o edema era grande. Não haveria cirurgia, teríamos que esperar o organismo reagir aos medicamentos. Foram longos dias e noites em hospitais. Era preciso fazer uma cirurgia no braço, mas o neurologista não liberava, era preciso esperar um pouco mais.
Mas ele não esboçava nenhuma reação. Não falava, parecia não ouvir, era indiferente a tudo, não manifestava nenhum sentimento de dor, alegria, tristeza. Parecia não viver. Dias depois fez a cirurgia do braço e foi liberado do hospital, disseram que nada mais podia ser feito. Voltamos para casa. Ele sem falar, sem nos reconhecer, sem esboçar qualquer reação a nada ou a ninguém. Os amigos vinham visitá-lo, voltavam arrasados, ele não os reconhecia. E era assim com todos.
Dia após dia eu o acompanhava e me perguntava se um dia ele voltaria a falar, dizer o que sentia... e aconteceu! Numa tarde ele viu o pai passando e perguntou se aquele homem era seu pai. Emocionada disse que sim e ele me perguntou por que ele andava num carro branco e não verde, quando comecei a falar ele disse que tivera um sonho e calou-se. E vieram outros dias de silêncio!
Numa manhã ele me pediu para ir à escola, liguei para o neurologista, ele disse que podia deixar. Falei com a escola, eles foram maravilhosos, prepararam não apenas sua sala, mas toda a escola para recebê-lo sem perguntas, sem o alvoroço típico dessas situações. Ele foi, mas não falou com ninguém, e assim foi durante uma semana.
Um dia ele acordou e como se nada tivesse acontecido perguntou pelo remédio. E como só um milagre poderia fazer ele voltou ao “normal”. Eu não sabia se chorava, ria, gritava ou simplesmente olhava para ele, que não entendeu o que estava acontecendo e me perguntou por que eu estava chorando.
Liguei para o médico, marcamos uma consulta. E a partir daquele dia a vida começou a voltar ao normal, claro que com algumas alterações na rotina anterior, ele foi encaminhado para terapia, fisioterapia e visitas periódicas ao neurologista. Em menos de 90 dias ele foi liberado por todos e hoje quando olho para meu primogênito tenho certeza que Deus existe e para Ele nada é impossível.
Meu filho renascera. E então eu abortei toda dor gestada ao longos daqueles dias. Sofri tudo que o medo não me permitia sofrer. Tive crises de choro convulsivo. Pânico de estradas. Não andava no banco dianteiro do carro. Era como se só daquele momento em diante eu me desse conta de todoo os riscos, do sofrimento negado pela impotência, pelo medo de admitir que não estava preparada para perder um filho.
Foram dias terríveis. Superados apenas pela paciência e apoio que recebi de todos. Foi quando decidi fazer um tratamento de choque e aprender a dirigir. Aos poucos fui enterrando os medos. Superando a dor. Mas ainda sinto-me inquieta quando se aproxima o dia 21 de abril.
*Foto de Omar Jr. no último natal, lindo e saudável.