PASSADO PASSADO A LIMPO

Vivi observando a minha mãe, uma professora com espírito de memorialista e de museóloga. Tudo guardava, de nada se apartava. Todas as coisas eram muito importantes, indispensáveis: cartas, bilhetes, objetos de toda sorte. Assim fui ficando até chegar a guardar papéis de bala. Até hoje tenho muitos cadernos dos cursos primário e ginasial. Ainda não consegui me livrar desses.

Depois que me casei aumentei o volume, considerando até arranjos de flores já velhos, entretanto algo aproveitáveis e fui me apegando a móveis e outros. Veio a grande onda da vida, o vendaval das mudanças e fui olhando e me perguntando para que serviriam os objetos que eu tinha, os presentes, todos os guardados. Novas ondas vieram e vi o oceano das surpresas me cobrir. Agarrei-me com força a uma embarcação naufragada e fiquei esperando tudo passar. Não passou logo. Mas quando as águas baixaram, não veio a pomba da paz com o raminho no bico. Vieram tempestades de areia e vendavais. Fiquei por aí me segurando em restos de desastres. E a vida passando airosa. Esse adjetivo fica muito bem para a vida.

Comecei a rasgar papéis, fazia-o tão sofregamente que cheguei a rasgar documentos. Mas esses também não tinham importância alguma, constatei. Destruí fotos.

Rasguei revistas, jornais e até livros. Rasgava junto a velha alma apegada ao passado, pensava como daria contas aos amigos de quem fui e de como vivi. Vi que o que somos fica além do papel e de todas as coisas, fica entranhado de tal forma que até mortos, marcamos presença.

Então iniciei um processo de ficar livre de móveis e de roupas que não usava. Eram só fantasias de cenas idas. E das quais pessoa alguma queria notícia.

Os ventos levaram bem para longe pedaços meus, tanto da alma quanto da carne. Rasguei mais, vendi mais, dei mais. Os espaços foram ficando mais amplos, passei a caminhar livre pelos quartos, cozinha e corredor. Vi que a geladeira não me faz falta, bem assim estantes, armários, louças, enfeites natalinos, guarda-roupas, etc. Descartei mais coisas. E agora quero mudar de ares, coisa que nunca desejei antes, com os pés do corpo e do espírito enraizados numa terra que amei tanto, sem retorno. Agora me encontro em uma casa sobrevivente do passado. Este me mostra como sua cara é feia quando chamado de volta à cena.

O passado me faz caretas com suas janelas sem dentes, suas portas carcomidas, suas telhas manchadas das lágrimas do destino. Preciso ordenar ao passado que volte para o lugar de onde se desenterrou. E que ele me deixe viver cada momento presente, intensamente.