O Despertar
Houve uma época em minha vida,em que sofri tanto por uma perda amorosa. Que acabei optando de uma forma inconsciente recolher minha dor e trancá-la no recôncavo mais distante do meu ser.
E assim fui vivendo meus dias aparentemente em paz. Nada mais me incomodava, o sol nascia e partia. E eu cruzava pelos dias com uma suposta leveza, que me dava à sensação de conforto que eu tanto valorizava.
Foi então que um acontecimento meio que banal, porém, trágico chamou-me a atenção. Uma amiga dos tempos de infância veio a falecer subitamente vítima de meningite meningocócica. O fato chocou a todos, pois estávamos no início de nossa juventude. Dias antes ela estava feliz em sua viajem a Ouro Preto e ninguém poderia suspeitar do que estava por acontecer. Foi uma morte precoce e subitamente trágica.
Juntamente com outra grande amiga, em uma tarde que deveria ser leve e calma como as outras que a antecedeu. Dirigi-me ao Cemitério do Caju para prestar minha homenagem a amiga que partira e dar apoio à mãe que ali se despedia de sua única filha.
Quando lá cheguei, como de se esperar, encontrei uma atmosfera que não poderia ser mais deprimente. Amigos silenciosamente atônitos, chocados e ao mesmo tempo perdidos em meio a rumores paralelos. Em um canto, comentava-se a respeito do atendimento médico negligente. Que diagnosticara a doença como sendo um simples resfriado, selando assim, o trágico desfecho que eu naquele momento presenciava. No outro, amigas em comum faziam comentários mostrando a indignação pela presença ali, do ex-namorado que tanto fizera sofrer nossa amiga. Ao fundo junto ao caixão, a visão de uma mãe num misto de desespero e desalento. Chorando, lamentando e querendo entender a perda da filha amada. Aos prantos e como quem fosse perder as forças que a mantinha de pé ela dizia:
_ Minha filha tão linda! Deus ela ficou negra!
Eu vagava no meio daquele murmúrio como quem passeia por uma galeria,era como se eu estivesse em outra dimensão. Mas o comentário daquela mãe me chamou a atenção. Então caminhei em direção ao corpo que repousava frio dentro de uma urna marrom. Havia sobre ele flores que não podiam ser vistas, pois a urna estava fechada. Deixando apenas a mostra seu rosto, envolto por um fino véu através do vidro na parte superior da tampa de sua urna.
Nos últimos e fatais instantes da enfermidade que a levou do nosso convívio. Ela sofreu uma isquemia vascular periférica; estagnando o seu sangue em seus vasos mais superficiais. E aquele jovem e lindo rosto, exatamente como sua mãe em seu dolorido desabafo havia descrevido. Adquiriu um tom negro arroxeado e um aspecto intumescido, que se mostrava discreto diante da tão espantosa "rouxidão surreal" daquele rosto frio...Inerte,que outrora abrigara lindamente uma sobrancelha delicada e bem definida, sobreposta a expressivos e ternos olhos castanhos, seguidos de um nariz bem talhado e adornado por um lindo sorriso.
Aquela visão me tocou e muito! Mas o meu choque maior foi perceber que apesar de saber da presença de todo o sentimento que aquele momento causara em mim,eu não podia alcançá-lo. Eu sentia e sabia que estava sentindo, mas não conseguia tocar os meus sentimentos. E em alguns breves segundos, busquei afoita dentro de mim tristeza, alegria, compaixão, raiva, medo, amor... Enfim,qualquer sentimento por mais rudimentar que fosse ele. Procurei em mim, do melhor ao pior dos sentimentos. E para espanto meu nada encontrei.
A cerimônia teve o seu fim. Voltamos para minha casa naquele final de tarde ensolarado, eu e minha grande amiga. Pegamos um ônibus, e enquanto meus olhos se perdiam pelas ruas que viviam seu inabalável cotidiano. Em silêncio eu tentava entender no meu íntimo o que havia acontecido. Em que ponto da minha estrada eu havia me perdido dos meus sentimentos?
Foi quando me lembrei do amor que um dia havia sentido, e da imensa e lancinante dor causada pela sua perda.Percebi que ao tentar aliviar a dor que sentia. Sufoquei-a até que fosse banida para o recôncavo mais distante do meu ser, onde foi devidamente encarcerada e condenada ao exílio.
Nesse exato momento, acordei para o fato de que não se pode enclausurar a dor para tentar deixar de senti-la como se ela simplesmente não existisse. Porque a capacidade de sentir... De se emocionar, é um dom e é único. É essa mesma capacidade que nos torna capaz de sentir não apenas a dor, mas compaixão, raiva, amor, carinho, medo, alegria... Enfim, nos torna capaz de sentir, viver e aprender com todos os sentimentos e suas nuances. Dessa forma não podemos deliberadamente abrir mão de sentir um deles isoladamente, Sem ao mesmo tempo abrir mão dos outros também. Pois a percepção de todos resulta da mesma sensibilidade.
Foi isso que confessei ter percebido ainda sob a forma de um lamento triste a G.V minha grande amiga, assim que entramos em casa. Mas hoje sei ,que foi naquele dia ambiguamente triste e afortunado diante da constatação que fiz, graças a Deus e ao meu próprio entendimento. Que reatei com a minha sensibilidade e reencontrei com os meus sentimentos... Foi nesse dia, num final de tarde ensolarado, diante da dor de uma nova perda, com os olhos voltados para as ruas e seu inabalável cotidiano... Que eu voltei a viver.
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Como foi bom te conhecer M.B... Passados tantos anos ainda posso ver o teu sorriso, e você está linda.
Esse Texto é pra você...