Meus vizinhos
Não há maneira de não se ter um vizinho. Fora a remota possibilidade de sermos ermitões convictos, e morarmos sozinhos no meio do que resta da mata atlântica, em todos os lugares teremos vizinhos. Todavia, muda-se o cenário, muda-se o vizinho: de crianças malcriadas com narizes úmidos a criaturas prestativas e lendárias. Nos morros da cidade, praticamente qualquer um da Grande Vitória ou de outras cidades, os moradores se entrelaçam em um só terreno. A água do tanque de um se esparrama pela terra na porta do outro. As tábuas furadas deixam passar os ruídos bons e...os maus. As brigas são repartidas e posteriormente comentadas pelos outros vizinhos. Os ruídos são compartilhados e praticamente nada é reservado. Há até os que fingem usar o batedor de carne na pia vazia para que os vizinhos pensem estar temperando o bife do almoço. As donas de casa sabem a marca da cera vermelha que a outra usa em seu piso, e há mutirões para levantar uma parede de lajotas ou bater uma laje.
Nas partes baixas as comadres e os compadres batizam seus filhos, trocam receitas e se acodem na falta de uma xícara de açúcar. Um prato vai com algo gostoso e deve voltar também cheio, sob pena de ver seu gesto comentado como falta de educação. Nas tardes modorrentas de domingo às vezes há uma pipa no céu e uma cadeira na calçada. Nas cidades maiores nem compadres e comadres há mais. A pipa se chama Nintendo, pago em cinco vezes, e prefere-se a Internet para conversar.
Nos bairros urbanizados e redutos grã-finos os rapazes que têm eira e beira lêem a revista Playboy e imaginam que a vizinha ideal seria aquela jovem bonita que vem pedir para dar um telefonema à noite e acaba namorando com eles. As moças gostariam por certo de um vizinho bonito e solteiro que encontram por ocaso no elevador e que simpatiza por elas como por encanto. E enquanto isso não acontece, conhece-se os vizinhos apenas por nome, se forem menos abastados, ou bajulam-se seus nomes se forem mais. Nos edifícios de um por andar os condôminos por vezes nem se cumprimentam, ao se encontrarem por acaso no elevador ou na portaria, mas não deixando é claro, de reparar com o rabo do olho a roupa usada.
Graças a Deus nunca tive problemas com vizinhos nos poucos endereços que ocupei. Lembro-me que quando tinha uns dez anos o som do radio a pilha de Vera, nossa vizinha dos fundos, era um som antigo, ruidoso, tocando as musicas do programa Jairo Maia na maior altura, ou o Ronda da Cidade, com os crimes horripilantes dos subúrbios. Nossos vizinhos da direita tinham um cachorro barulhento e feroz, que graças a Deus morreu e nos aliviou. Os da esquerda tinham uma filha excepcional e altista que se chamava Rita, que por horas a fio chamava a mãe no mesmo tom de voz.
Quando mudei-me para São Mateus, norte do Espírito Santo, tinha uma vizinha de quarto de hotel não asseada que me fazia subir pelas paredes. E quando mudei-me para uma casa em uma rua tranqüilíssima, meus pequenos vizinhos - dois garotos do casal da esquerda - tiravam meu sossego explodindo bombas de todas as maneiras que suas criativas cabeças podiam imaginar: dentro de latas, em poças de água, na areia...isso sem dizer que o pai destes anjinhos jogava a sujeira da gaiola do passarinho bem no meu quintal, que misturava-se aos restos de palha de aço usada, também jogados por eles. Após este endereço, mudei-me para um apartamento muito bom, na parte central da cidade. Tinha as paredes brancas, o piso cinza e três pequenos quartos. Não tinha, no começo, vizinhos no apartamento do lado, porém na ala de trás uma colega de trabalho era casada com um rapaz violento, que ameaçava bater nela. E eu, involuntariamente, ouvia muitas brigas sem querer. Da minha sala prolongava-se uma pequena sacada de dois metros de largura, de onde tinha-se uma maravilhosa vista das catacumbas do cemitério. Desses vizinhos não posso reclamar pois nunca me incomodaram. O fato de ter esta vista da sala e do meu quarto nunca me provocou medo. Bem, é claro que logo que me mudei, a visão das sombras das cruzes contra a parede branca da capelinha, nas noites de chuva e vento, me deixava ressabiada - então qualquer movimento das plantas me fazia prestar atenção por dez minutos seguidos nos menores movimentos. Porém nada demais vi por ali: nem fogo fátuo, nem almas penadas, nem vivos góticos - só tumbas antigas que há muito tempo não recebiam visitas. Túmulos chiques de granito, tumbas pobres com só uma cruz de madeira no chão sem grama e jazigos cafonas pintados de azul celeste. No dia de finados os coveiros limpavam o que podiam, caiavam os muros, varriam a calçada de areia, e recebiam os parentes que depositavam flores. Assim, por muitos dias eu via pequenos pontos coloridos, que murchavam ou não, dependendo do bolso. Cheguei a sugerir o plantio de árvores em volta dos muros, e em um domingo de sol lancei a sugestão ao coveiro, mas ele não foi muito receptivo e eu, pela primeira vez, vi de perto meus vizinhos. E foi a única vez em que, em uma tarde de domingo, dei voltas num cemitério. Quando eu recebia visitas em meu "ap" eu já aguardava curiosa a reação alheia ao fato, e os meus visitantes olhavam meus vizinhos com um sorriso irônico, dizendo que aqueles nunca dariam trabalho. Havia também os visitantes medrosos, que me achavam corajosa, mas esses pareciam não dar valor ao que viam atrás: bem adiante, deitava-se um vale e um rio, o Cricaré, que nas subidas alagava o pasto da fazenda vizinha, deixando o capim verde e pequenas poças onde de manhã bem cedo, ao sair para o trabalho, eu via garças brancas pescando, e ao lado da olaria um restinho de névoa da madrugada, neblina fresca dos meses mais frios. Meu colega Ricardo, que sempre tenta responder às minhas tantas dúvidas sobre a religião católica, com seu cavanhaque e sotaque levemente mineiro, diria que é só uma questão de ver além, pois há sempre um vale, basta levantar um pouco o ângulo de visão.