Contrastes de um mesmo tempo
É dezembro. Ouve-se o grito na maternidade, o choro de Lara anunciando sua chegada em um mundo estranho. Lágrimas escorrem do rosto do pai e da mãe, enquanto o médico e a enfermeira seguem normalmente o procedimento rotineiro em suas vidas profissionais. Reunião da família para acolher a natalícia, presentes, carinhos e afagos. Ela é a cara do pai mas tem o olhar da mãe, titia também diz ser parecida. Viva! Ela nasceu, tudo está pronto, todos estavam esperando por ela, nada podia ser melhor, tudo deu certo.
Do outro lado do prédio da maternidade, seguindo o mesmo estilo de construção, o natal também se aproxima. Ali, junto com algumas dezenas de moradores está Gertrudez. Com 84 anos ela já passou por muitos natais, viu a cidade crescer, assistiu aos horrores das guerras, viu o milagre da energia elétrica acontecer, viu crianças e crianças nascer, viu sua família toda partir.
Sim, no centro da cidade, o asilo e a maternidade são duas alas de uma mesma construção, são dois lados de uma mesma obra, possuem a mesma cor, os mesmos detalhes e pertencem à mesma congregação religiosa. Nesse espaço, Lara esperava conhecer a vida, enquanto Gertrudez esperava conhecer a morte. A diferença de onde elas se encontram é 84 anos. Considerando o ano cristão, que contabiliza neste natal 2009 anos, 84 anos seria apenas um pequeno passo; considerando a idade do homem na terra (milhões de anos), 84 anos seria um restinho de poeira perdido na imensidão. Esse era o tempo que separava Lara de Gertrudez.
Lara era perfeita, cheia de vida, olhar alegre e saudável. Gertrudez tinha alzaimer, falava sozinha, pálpebras caídas que cerravam seus olhos mesmo estando acordada. Lara tinha pai e mãe, Gertrudez um dia também teve. Lara terá filhos, Gertrudez um dia também teve. Lara tem um lar esperando-a. Gertrudez um dia também teve.
Quinze anos se passaram. Ao voltar do colégio, Lara percebe movimentação em frente ao asilo. Curiosa, entra e visualiza o corpo de uma senhora sendo velado. Ninguém chora, ninguém grita, o ambiente é lúcido, como se apenas fosse um ritual de passagem esperado. Ao fundo, alguém comenta: “Gertrudez deixará saudades”.
Saciada a curiosidade, Lara volta a fixar o fone do seu MP3 no ouvido, caminha rapidamente até o ponto do ônibus, lembra que ainda tem muita coisa para fazer naquele dia – trabalhos da escola, encontro com as amigas e ainda aulas de inglês e ginástica. Olha para o relógio e percebe que está atrasada de novo. Lara esbraveja consigo: que droga de tempo! Nem percebo e ele passa tão rápido!