À Luz de Velas

À Luz de Velas

Vim jantar com você. Eu sei que você não me convidou, e se bater com a porta na minha cara, será apenas mais um não. Conheço o não. Acredite. Tive-o em meus lábios por longo período e alguns ainda ecoam em meus ouvidos.

Por que eu vim? Porque queria te conhecer pessoalmente. Ver o seu sorriso. Sorrimos com os olhos. Olha, isso já é um ótimo começo. Pouca gente sabe desse truque. A alegria é confundida com a euforia, há mais tempo do que devia.

De novo perguntas por que eu vim? Porque é natal. Eis uma desculpa irrepreensível. Não amiga, não temo a solidão. Sou filho único, sabe? Fui treinado para isso.

E agora, com o intuito de impressioná-la, faço alusão a um personagem de Castaneda, o que dizia que a morte era sua conselheira. No meu caso, não é necessário chegar a tanto. Lá e acolá, a solidão tem suas vantagens. A principal delas, arriscaria eu, é que o confronto com o afamado “eu” deixa de ser um confronto e torna-se um convívio. Nem me fale, certos convívios são equivalentes a um confronto.

Sim, percebo que tens convidados. Posso amalgamar-me entre eles. Sabe, sou apenas mais um. Isso pode parecer uma coisa da boca pra fora, mas quando vem das vísceras é uma constatação relaxante. Como encher os pulmões de ar ou tirar os sapatos. Depois, sendo mais um, posso errar pelos ambientes e acenar discretamente para uns e outros. Aprendi algumas palavras mágicas e emprego-as quando necessário, tais como: por favor, muito obrigado, você tem toda razão, etc. A outra vantagem de imiscuir-me entre os convivas é salvá-la da triste constatação das expectativas. Minha voz chinfrim, por exemplo. Meu sorriso de lábios fechados, para não revelar os dentes que faltam.

Vim jantar com você, mesmo ciente de tantos empecilhos, sendo, por ventura, o maior deles, o de não ter sido convidado. Em contrapartida, a força motriz deste feito, repousa no desejo de conhecê-la. Noutra data, não teria o arrojo de ter tocado a campainha. Mas sendo natal, a boa vontade reinante, mesmo sem presente e correndo o risco de dar meia volta...

Queria poder dizer, como é bela a sua cidade, mas quando o ônibus entrou na rodoviária, estrelas há muito despontavam no céu.

Vim jantar com você, pois no decorrer da cerimônia, eu poderia lhe contar umas anedotas. Todas corretas, de salão. Tenho anedotas incríveis. Conheço algumas receitas. Sei alguns versos de cabeça. E outras tantas curiosidades. Amenas, como o vôo das garças. De fato, é provável que em dado instante você ache cansativo. Moças adoram ouvir histórias de dragões abatidos pelos moços. Guardei minha espada faz tempo. Ou bem descobri a futilidade das discussões, ou percebi a inutilidade da espada. No frigir dos ovos, acho que pouco importa, pois afinal vim jantar com você.

O que vais explicar aos convidados? Ora, diga tratar-se de um primo excêntrico, distante, tão distante que ao logo da vida esqueceu-se de si mesmo, que foi viver com os aborígines nas planícies australianas, que chegou sem aviso, como chegam a fortuna e as epidemias, e que por fim bateu à sua porta, como o destino às vezes faz, e por algumas horas, por algumas horas apenas, esse parente inusitado oriundo dos confins, nada terá a oferecer senão dois dedos de prosa, e nada solicitará, mas tão somente, e num tom pausado, dirá:

- Vim jantar com você.

Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 23/12/2008
Reeditado em 05/08/2013
Código do texto: T1349718
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2008. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.