NA TERRA DOS CORCUNDAS...
Nos anos oitenta, no período final da repressão militar, ensinava em um colégio comunitário, denominado Educandário Cenecista de Paripe, localizado a rua Piauí s/nº, no subúrbio de Paripe. Era uma das escolas filiadas a Campanha Nacional de Escolas da Comunidade - CNEC, entidade filantrópica, com representação nacional sediada em Basília.
Tínhamos um colégio tranqüilo, no ponto de vista disciplinar, de alunos dados e alegres. Com 26 salas de aulas, em torno de 3.000 alunos matriculados, distribuídos nos três turnos nos diversos cursos: no Curso de 1º grau - hoje Ensino Fundamental, - nos cursos médios de Técnicos em Administração e Contabilidade; Magistério; Adicionais de Língua Portuguesa; Ciência e Matemática.
Havia no estabelecimento um Centro Cívico, bastante atuante e com alunos bem representados; grupo de escoteiro, com atuação nos dias de sábado e domingo; grupo de literatura em que participavam professores e alunos. Esse grupo fazia senventia de um mural, feito de madeira, com dimensões de dois metros de meio de cumprimento por um e meio de altura que ficava localizado no corredor do pavilhão superior do colégio. Pavilhão esse que mais tarde os professores e alunos, através de um plebiscito, no ato de gratidão por inúmeros benefícios prestados pelo diretor, resolveram homenageá-lo, passando a ser chamado de "Pavilhão Prof. Dilson Alves de Campos". O mural denominado de "O Alvorada" acredita-se que tinha esse nome porque o seu formato se assemelhava ao Palácio da Alvorada. Fixado e sustentado por um cavalete de madeira clara envernizado. Forrado o fundo do mural com flanela verde. Nesse mural, semanalmente, colocavam-se poesias, crônicas, notícias, charges, estórias, paródias, reportagens esportivas, elaboradas por alunos e professores.
Tínhamos um jornalzinho, com tiragem quinzenal de cerca de 3.500 exemplares, confeccionados no próprio colégio, através de uma máquina de "Offset", própria ao tipo de serviço e bastante avançada para a época. Esse jornalzinho, denominado "O Zero", circulava entre a comunidade escolar e recebia o apoio e colaboração dos comerciantes de Paripe que colocavam propagandas comerciais e anúncios.
Eu me lembro muito bem que "O Zero" publicou uma matéria de autoria de um dos professores, intitulada: "A Filosofia do Zero". Lembro-me muito bem que era uma paródia, um trocadilho, entre "o zero" que podia se atribuir a qualquer pessoa e "O Zero" da denominação própria do jornal. Esse texto com cerca de umas 35 a 40 linhas, deu Polícia Federal, naquela época da repressão militar.
Alguns professores que faziam parte do jornalzinho foram convocados a comparecer a Polícia Federal, no setor de censura, a fim de esclarecer o conteúdo do texto, visto que o Departamnto de Censura da Polícia Federal achava que o conteúdo do texto era um atentado à moral e ao civismo, pois corrompia os bons costumes da juventude estudantil.Na verdade, o texto tinha dúbio sentido. Passaram-se alguns anos, tive a triste informação de que o citado fato havia sido denunciado por um professor do colégio que se fazia amigo da turma; dizia-se militante comunista e, na realidade, não passava de um simples informante dos militares. E "O Zero", por determinação do diretor do colégio, alegando motivo de força maior, através de portaria, ficou proibido de circular, em caráter definitivo.
Uma vez, encontrava-me na ante-sala da "secretaria da escola", que era a sala de recepção dessa "secretaria", conversando com três alunos, do Curso Técnico de Administração, no turno noturno. Nessa recepção, distribuíam-se e recebiam de costumes os "Diários de Classes" dos professores; quando de repente, adentra um aluno, alto, corpulento, com físico de halterofilista. Esse rapaz encosta-se ao balção da recepção, feito de construção com balaustrada azulejada, apresentando um corportamento nervoso e irrequieto e indaga com voz áspera para a funcionária Maria Nilcéia. Essa funcionária era pessoa agradável, simpática, comunicativa e elegante no trajar, responsável pelo controle e distribuição dos "Diários de Classes":
- Boa noite! "Biologia" já chegou na casa?
A funcionária respondeu educadamente. com voz agradável:
- Boa noite, meu amigo. Temos dois professores de Biologia neste turno. É muito cedo, são apenas 18:00h, pois as aulas, como você deve saber, começam, religiosamente, às 19:00h. Qual dos dois, você desja vê-lo?
O aluno, com tom de voz alterada de desprezo e agressiva,
respondeu-lhe:
- É o que é corcunda, baixinho, narigudo, aleijado, nojento e injusto. Ele me deu dois em biologia. Que absurdo!... Esse corcunda vai me pagar!... Esse aleijado, horroroso, vai ver o que eu vou fazer!... Teve gente que pescou e se deu bem!... Ele viu e nem tomou a prova!... E eu que não pesquei, me deu dois. Isso não vai ficar assim!...
Naquele instante, quando o aluno começou a expressar aqs suas ameaças, inesperadamente, aparecera o esperado professor de biologia, que adentrara devagarinho, nas pontas dos pés, com ar de riso, posicionando-se, exatamente, um poouco afastado das costas do aluno, olhando para os presentes e fazendo sinal de silêncio, ouvindo-o com atenção e paciência as ofensas e lamúrias do educando, sem que o aluno percebesse a sua presença.
Quando o aluno terminou as lamurias e ofensas, o professor Imbassay, que era também farmacêutico, um pouco calvo, de olhos graúdos e brilhantes, narigudo, baixinho, com aparencia de meia-idade e bem humorado, com gestos calmos levantou o braço para alcançar a altura do ombro do aluno e deu duas palmadinhas amigáveis, fazendo-lhe tomar um susto que o deixou atônito, e, com voz bastante equilibrada e serena, disse-lhe:
- Anchieta, meu filho, por felicidade e sorte sua você não se encontra na terra dos corcundas, pois lá, com este porte físico e tamanho todo, seria horroroso, abestalhado e aleijado. Você não acha?!!!
O corpulento rapaz atônito, em silêncio, com os olhos arregalados e as mãos nos bolsos, nos olhou e saiu dizendo impensadamente:
- Eu também acho!... Professor depois eu converso com o senhor! Tá!...