Crónicas do Muito Pouco ou Quase Nada: A Melga

A Melga

Pousava a face na almofada macia confiando que mais uma noite relengueira e solitária se seguiria à longa cadeia de noites de Verão, sempre iguais, quando me apercebi que me equivocara. Hoje teria um sono diferente.
Uma pequena melga voltejava sobre a minha cama com o seu zumbido característico, anunciando-me que já não mais me encontrava só.
Querida melguinha, pensei para com meus botões, foi a boa sorte que te enviou em meu alcance, no intuito de me proporcionar o aconchego de uma familiar companhia.
A melga é um insecto de nobre carácter. Senão vejamos: ela não aparece sub-repticiamente para sugar a seiva que nos corre nas veias. Se assim fosse seria tão reles quanto um vulgar sicário, um melcatrefe ou um facínora da pior espécie, roubando pela calada do negrume da noite.
Ao invés, a doce criatura oferece-nos com generosidade o livre arbítrio de lhe concedermos a graça de uma pequena dádiva de vida. Com apenas um grocho de líquido que corre ao compasso do batuque do coração, o bicho enche a morca e garante a subsistência da prole contribuindo para a sobrevivência da sua espécie, obedecendo à sábia lei da natureza.
A ferradela da sua microscópica trombeta é-nos totalmente indolor e benigna. O sangue que nos subtrai não é mais que uma gota de azul num oceano. Ainda assim, a sua melopeia humilde e honesta permite que indivíduos pouco sensíveis, fragueiros ou simplesmente prenhes de ranço ou mera cainheza, optem pelo estalo certeiro esmagando o gracioso animal contra a pele. Isto para não falar nos modernos instrumentos de guerra química que mais não são que autênticas armas de destruição massiva.
Por tudo isto fácil é constatar o carácter distinto e notável da simples melga comum, que ao contrário dos seus primos Anophélis e Flebotomo, letais e lascarinhos que vão matando em silêncio aos milhões, dá a conhecer a sua presença com um sinal sonoro inequívoco.
Também a comparação com a sua parente, ordinariamente designada por mosca do gado, lhe é vantajosa. O rústico e vil moscardo, habituado a servir-se do gado bovino como sustento é dotado de uma grossa guilha, permitindo-lhe atravessar o rijo couro até aos capilares dérmicos. Se os pacíficos ruminantes suportam com alguma indiferença a picadela vampiresca, já um pobre cristão de pele tenra, quando confundido com alguma vaca ratinha, sente uma dor aguda e lancinante na hora do ataque.
Quando me visita a videirinha melga, sarabandeando em meu redor com seu tonilho afável, penso que recebo a graça de um lépido camarada de estrada. A discreta pápula, testemunha inócua da troca de fluidos entre seres vivos de um só planeta, pouca picação provoca. Pode até ter algum sainete, conforme a zona anatómica atingida, podendo ser alvo de zumbaia tão atrevida quanto inocente.
Tenho a apontar um único senão, pois perfeição é algo quase impossível. Não se trata da falta de beleza, pois que de um chuvenisco mosquito não se poderá esperar que seja uma amaviosa falena, mas da fraca qualidade musical da sua cantoria.
Após este breve julgamento apresso-me a absolvê-la da culpa porque o singelo animal só dispõe de uma vintena de dias de vida, não dispondo de tempo que lhe sobre para estudar mais que uma partitura única.
Somos nós, os dignos representantes dos ramos mais altos da árvore da evolução do reino, que estamos um degrau acima em longevidade. As várias dezenas de anos que temos a sorte de viver são meros instantes na grande ampulheta do tempo que a todos nos devora. Ainda assim, pela vida fora, vamos tendo a oportunidade de encontrar centenas de melgas. Daí a cantiga parecer, a nossos ouvidos, um tanto repetitiva e enfadonha.
Cogitando estava nestes pormenores de parca importância enquanto minha breve companheira me divertia com suas bugiarias em voos rasantes sobre o meu rosto. Procurava o cibo que eu de bom grado proporcionava ao pequeno íncola de brejos e charcos de água parada. Tão frágil e no entanto tão destemida, impressionando-me a coragem com que aborda corpos desmesuradamente maiores e mais poderosos que o seu. O que pensará no momento do encontro com o ente do qual dependerá a sua vida ou morte? Seremos nós, na sua perspectiva inversa, o ser divino ao qual se entrega em êxtase? Nesse caso será com certeza a mais fantástica aventura. Em vez de orar a um Deus ausente, a melga tem o privilégio de O ver, sentir e até saborear!
E assim se passou um par de horas em que a solidão não teve lugar no meu quarto vazio no qual se cruzaram duas pequenas histórias de vida “ no melhor mundo possível”, como diria o optimista Leibniz.


AnaMarques
Enviado por AnaMarques em 12/11/2008
Reeditado em 17/11/2010
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