Banco de Imagem - retrato,  menina, abraçando,  dela, joelhos. fotosearch - busca de fotos, imagens e clipart

AS MARCAS DE UM OLHAR

 

Sempre gostei da linguagem do olhar, e desde que li a série de crônicas de Raimundo Antônio sobre esse tema, fui novamente invadida pela lembrança de alguns olhares que marcaram profundamente minha vida, e tentei escrever sobre eles, mas sempre me perdia pelo caminho e o texto não fluía.

Hoje (02/10), talvez por ser o dia dedicado àqueles que nos deixaram para trás, levando com eles parte de nossos sonhos e, nos deixando apenas lembranças e saudades, eu senti vontade de tentar, mais uma vez, falar daquelas marcas deixadas por olhos que nunca esqueci.

Dentre eles, está o olhar de meu cunhado morto a tiros em sua residência. Logo após os disparos, corri em sua direção e nunca vou esquecer a angústia que li naquele olhar.

Quando me aproximei de seu corpo caído e cravejado de balas, meus olhos foram imediatamente atraídos pelos seus e senti tanta dor e desespero naquele olhar, que imediatamente procurei ser forte, e corri em busca de socorro. 

Ao colocarmos seu corpo no carro para levá-lo ao hospital ele ainda suspirou, e pediu que cuidássemos de seus filhos. Foram suas últimas palavras. Chegou ao hospital sem vida.

Além de seu olhar, ficou gravado em mim, o olhar perdido de seus filhos, que olhavam, viam, mas parecia não saberem o que estavam vendo: seus olhos estavam vazios, apesar da dor que transbordava de seus olhares perdidos.

Durante muitas noites não consegui dormir: aqueles olhos tristes e desesperados me perseguiam. Tentava adivinhar o quê, além daquele gritante desespero, ele queria nos dizer. Quantas vezes eu me fiz a mesma pergunta: o que um homem, sentindo que caminha em direção a morte, pode querer dizer aos que ficam? Qual a dimensão da dor que o aflige? Que mais aquele olhar - ao mesmo tempo sem vida - e lutando contra a morte, poderia nos dizer?

Àquele olhar foi a mais forte expressão de dor que já vi em toda minha vida. Havia um pedido de socorro, um desejo de não partir, de segurar a vida, de mandar a morte esperar um pouco mais. Também percebi medo. Mas não saberia dizer de quê. Seria de morrer? De deixar seus filhos, sua esposa, sua carreira? Aquele olhar, onde a dor era a expressão mais forte, persegue-me até hoje. Talvez porque tenha sido ele a primeira pessoa que vi morrendo.

Dois anos depois o olhar de quem foi visitado pela morte voltou a me fitar. Mais uma irmã ficou viúva e fui à responsável de levar a notícia aos seus filhos. Nunca esquecerei o olhar perdido de sua filha caçula, o olhar desesperado de seu filho mais velho e a sensação de abandono refletida nos olhos de seu filho do meio. O olhar de minha irmã era de resignação, de alguém que sabia ter dado o melhor de si e ter vivido todo a amor que sabia dar.

Outro olhar que me marcou profundamente foi o de meu pai quando estava enfermo. Era um olhar perdido, como se olhasse e não visse. Apático. Triste. Doía-me ver seus olhos sempre marejados e perdidos no infinito. Ele mal conseguia falar e, toda vez que eu o olhava, sentia a presença da morte nos rondando. Era desesperador.

Mas, a cena mais forte foi quando o Padre veio dar a extrema-unção, e ele, de olhos abertos, olhando fixamente o padre parecia beber cada palavra pronunciada, e quando fomos convidados a rezar o Pai-Nosso, ele, pela primeira vez na vida, rezou.

E o fez com uma fé tamanha, que me levou às lágrimas. Cada palavra era repetida, enfaticamente, por ele, quase sem forças, mas com uma fé que eu nunca havia visto. Ele rezava como se ali, naquelas palavras, estivesse à salvação - não apenas de sua alma - mas de sua própria vida. E aquele olhar perdido parecia, finalmente, ter encontrado o que procurava.

Quando meu filho ficou em coma o que mais me angustiava era a ausência de brilho em seu olhar. Seus olhos que olhavam e parecia não ver. Era como se a vida estivesse fugindo de seu corpo. Seu olhar parado me enchia de medo e solidão.

Estes foram os olhares mais dolorosos que presenciei em minha vida.

Tenho marcas profundas provocadas pela dor de olhares em seus momentos de infinita tristeza, mas também guardo em mim o brilho de olhares felizes. Apaixonados. Em momentos de cumplicidade e prazer. Descrevê-los seria impossível, pois graças a Deus eles são presença constante em minha vida, abrindo pequenos parênteses para os olhares de saudade e perda.

 

Ângela M Rodrigues O P Gurgel
Enviado por Ângela M Rodrigues O P Gurgel em 04/11/2008
Reeditado em 04/11/2008
Código do texto: T1266265
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2008. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.