Surpresas do vento
Os tripulantes do “Mercurius” que estavam dentro da cabine descansando ouviam o barulho do mar batendo no costado do veleiro.
Eram quatro, cansados e procurando dormir logo após terem cumprido o seu quarto, palavra que significa o tempo de trabalho que os velejadores usam. Regra geral, cada quarto tem seis horas, daí o seu nome. É o quarto do dia. No convés, mais quatro, mareando as velas, tomando conta do barco.
O “Mercurius” era um veleiro de 45 pés, cerca de treze metros e meio, nada desprezível. Moderno e adaptado para corridas no mar, longas ou curtas regatas onde ele estava sempre presente.
Interior um pouco sacrificado, não havia o luxo dos veleiros comuns, onde a finalidade é o desfrutar de águas tranqüilas, quase sempre. Nestes o luxo costuma ser uma característica. Bela sala, com mesa retrátil, que quando posta chama a atenção de qualquer sonhador. Poltronas confortáveis, biblioteca pequena, mas selecionada, de acordo com a educação do dono, sempre chamado comandante.
Cozinha nada pequena. Os melhores barcos têm fogão e forno que usam álcool, evitando perigos de uma explosão.
Verdade que o cozinheiro não pode se espalhar muito. Afinal, ele não está na cozinha do seu apartamento ou casa. Mas nem por isso deixa de preparar excelentes refeições, se tiver capricho para isto. Eu mesmo já comi um filé de dourado que não me esqueço até hoje, passados quinze ou pouco menos anos. Pescado na hora, no corrico, que nada mais é senão uma linha forte de nylon, com iscas artificiais. Amarra-se no cunho de popa e ficamos esperando que um belo peixe caia no engodo.
Os tripulantes que estavam no convés trabalhavam com afinco, aproveitando o belo vento de través que faziam com que o veleiro desenvolvesse sua melhor velocidade. Vento de través é o que entra perpendicularmente ao eixo proa-popa do barco. Seguro, sem perigo de rondar, ou seja, mudar de direção bruscamente, ele enfuna as velas que são abertas, fazendo uma direção de aproximadamente 45 graus com a proa do veleiro, além se ser vento seguro, é bom para velejar, o barco plana. Ao invés de ficar com o seu caso mergulhado n’água, ele desliza no mar dando uma satisfação enorme aos tripulantes.
O “Mercurius” já estava planando há quase duas horas. Pouca parte do seu casco estava mergulhada; toda a outra estava à vista d’olhos.
Eu era o navegador. Havia tomado nossa última posição como latitude 34 graus, um minuto e nove sexagésimos, Sul. Longitude, 013 graus e 10 minutos, Leste. Próximos à cidade do Cabo, África do Sul. Não havia como errar, o GPS do veleiro estava como o meu: questão de hábito, eu havia cruzados as retas de Sol na sua passagem meridiana, (quando atinge seu ponto mais alto, durante o dia) com a reta de altura do mesmo astro, às três horas da tarde. Com meu sextante, que nunca dispensei. Nem ele, nem minha calculadora científica, coisas de melhor qualidade, nas quais sempre depositei muita confiança. Como complemento, o almanaque náutico do ano. Dizem que depois do aparecimento do GPS, ninguém mais usa o método da navegação astronômica. Conversa fiada, o prazer de se localizar usando a navegação tradicional não foi abandonado pelos que dela dependeram, antes que o fabuloso aparecimento do GPS surgisse. Este aparelho, sejam quais forem as condições do dia ou da noite, fornece uma posição com erro mínimo, de aproximadamente dez metros.
Estava pensando em fazer uma sopa de aveia com carne seca desfiada, que já se encontrava pronta na geladeira, eu havia dessalgado e desfiado. Com rodelas de cenoura, salsa e cebolinha, é um jantar e tanto, considerando o chá com sanduíches quentes, servido às onze horas da noite.
Ao contrário do que muitos pensam, come-se muito numa regata. É fácil explicar: o esforço despendido é grande.
Do convés vem um alto grito. Subo rápido e vejo o comandante com a mão no peito, sem cor, suando muito. Ele é médico e diz “estou tendo um infarto violento”, cai e não mais fala nada. Temos outro médico a bordo. Geraldo logo atende ao amigo e colega de anos. Seu estetoscópio autoriza o que fala: “morreu.”
Morreu como, Geraldo? Estava na roda de leme, feliz, dizem todos os que presenciaram.
- Soares morreu, diz ele quase em prantos sem limites.
O comande havia falecido sim. Tentamos proteger o seu corpo, enrolando numa vela cheia de gelo.
De nada adiantou. Seis horas depois, a decomposição se processava.
Nada adiantava querer levar o corpo para ser enterrado n’África.
Seu corpo foi largado ao fundo, após reza de todos.
Nunca mais pisei num convés de veleiro de oceano, o que desafia os ventos, as correntezas, o perigo desconhecido...
Descanse em paz, comandante Soares, meu amigo Jacintho.