O novo "bode expiatório"
Pululam por jornais, revistas, sites um sem-número de textos - poemas, artigos, crônicas, análises feitas e assinadas por gente abalizada, seja pela clareza de raciocínio ou por um canudo de psicólogo ou psiquiatra debaixo do braço - sobre o assunto "relações afetivas e/ou amorosas via Internet". Minha caixa postal que o diga.
Sobram teses, multiplicam-se testemunhos, dividem-se opiniões quando o tema vem à tona. Há até quem se auto-intitule dependente da rede e proponha a instituição do I.A (Internautas Anônimos), nos moldes do A.A (Alcoólicos Anônimos).
A dúvida hamletiana - ser ou não ser?, No caso um dependente virtual - está em quase todos os textos, relatos em sua maioria de decepções e desencontros afetivos via net. Com ínfimas diferenças uns de outros, pecam todos em um ponto: tratar a Internet, o chamado mundo "virtual" de forma diversa da realidade nossa de cada dia.
Não estou aqui para tirar o mérito artístico dos textos. Não sou crítica literária. Nem juíza dos sentimentos alheios. É que me surpreende ver tantas pessoas tratarem a rede como se tivesse ela, por obrigação e objetivo, ser redentora de todos os nossos males: nos resgatasse do isolamento, recriasse as relações humanas, redefinisse o Homem. Por outro lado, a execramos porque nela mostramos - ao contrário do que se diz - o que de fato somos.
A rede não é redentora nem algoz. Muito menos culpada das expectativas que as pessoas para ela transferem. Culpar a net, os chats, é o mesmo que culpar o bar, o restaurante, a boate, o supermercado, a locadora de vídeo, a fila do banco. Só porque neles conhecemos aquele(a) que imaginávamos ser o amor de nossas vidas ou o nosso(a) melhor amigo(a). Amor e amizade que não resistiram a uma semana de convivência.
Claro que o anonimato das salas de bate-papo, dos grupos de debates, permite a muitos criarem personagens de acordo com suas fantasias. Quem nunca esbarrou com nicks tipo: "De bem com a Vida", "Sinceramente Gostosa", "Coroa Enxuta?", "Cigano Sedutor", "Amante Perfeito", "Amor Discreto"?
Desnecessário dizer que o mais provável é que o "De Bem Com a Vida" esteja na maior deprê, que a "Gostosona" não passe de uma tremenda baranga, que a "Enxuta" esteja molhada e caindo aos pedaços, que o "Amante Perfeito" sofre de ejaculação precoce e jamais ouviu falar em Ponto G – e, claro, o tal "Discreto" é, justamente, aquele que contará sua intimidade para todo mundo.
Mentem. De um jeito ou de outro, mentem. A maioria. Como em tudo, há exceções que confirmam a regra. Mas mentem, principalmente, para si mesmos, porque devem mentir no seu dia a dia. Ao atenderem ao telefone com voz de riso, quando estão em prantos. Ao dizerem "tudo ótimo" (o mundo está desabando sobre sua cabeça), quando lhes perguntam como anda a vida.
Na realidade não passam de "mentiras sinceras" a la Cazuza, com a justificativa de que é "para não preocupar o outro". E são aceitas, até louvadas. Porque educadas, civilizadas. Porque mostram como são fortes, discretos, reservados e passam pelos dissabores da vida estoicamente.
Traduzindo: é pura e simples hipocrisia social. Mais uma das muitas cometidas diariamente, em nome da "finesse". Ora, se está mal, diga que está. Ou diga que não deseja falar sobre o assunto. Ou, então, não diga nada. Melhor assim. Seja "no real" ou "no virtual", como a maioria dos internautas gosta de subdividir a existência.
A Internet é só uma extensão da vida que levamos. Nada mais. Nada menos. As pessoas chegam e partem do nosso cotidiano a todo momento. A rede não é um território imaginário, uma outra dimensão, um mundo paralelo de filme antigo de ficção científica. Tanto aqui como lá, mantendo a subdivisão, num dia ganhamos um amigo, no outro deixamos partir uma amizade mais antiga. As razões são várias. Bobagem enumerá-las aqui.
Creio que já passou da hora de desmistificarmos esse "virtual" e encararmos de frente as nossas limitações. Vamos assumir a responsabilidade pelas frustrações decorrentes das expectativas criadas por nossas carências. Há motivos e meios de sobra, na rede e fora dela, para atingirmos nossas metas, obtermos satisfação.
A rede pode e deve ser mais um instrumento para alcançarmos esse estado de espírito, Com a rede, o Louvre está a dois quarteirões e os mosteiros do Tibet ficam logo ali, ao dobrar a esquina. Melhor que isso, só estar "a dois passos do paraíso".
É fato e, contra fato, não há argumento. Existimos num mundo conturbado. Saímos de casa sem saber se voltaremos. Há guerras e conflitos em toda parte do globo terrestre. As relações interpessoais mudaram. Os papéis tradicionalmente desempenhados por homens e mulheres nessa sociedade louca, pós-moderna, contraditória foram modificados e ainda não os sabemos de cor.
As mulheres queimaram sutiã em praça pública para, décadas depois, vestirem-se de "Tiazinha". Submetem-se à ditadura da beleza do momento, inflam-se com silicones. Os homens exigem o direito de chorar e de dizer não, quando uma mulher indesejada os assediam. Mas ainda desperdiçam horas e suor nas academias para exibir músculos a Schuarzenegger, coçam o dito cujo em público e cospem no chão.
E o que fazemos nós, as que queimamos sutiã, diante da rejeição masculina? Taxamos o sujeito de boiola (isso, para mantermos o mínimo de elegância), pois queremos dele a velha atitude do garanhão. E o que fazem os homens, quando uma mulher exerce livremente seu direito à sexualidade? Ainda somos chamadas de fáceis, de piranhas mesmo.
Vivemos a era do "tudo ao mesmo tempo agora", profetizada na década de 80 pela Libelu ( Liberdade e Luta, antiqüíssima e já finita, ao que me conste, facção de esquerda). É difícil viver num mundo onde a única certeza é a incerteza. Mas o culto ao sofrimento, às lágrimas, às saudades tristes, às perdas, aos amores não correspondidos, ao martírio, à infelicidade não me parece solução para nada. Chega de culpar o outro e a rede por nossas desventuras.
Ambos só podem nos decepcionar, magoar, entristecer se criarmos fantasias e jogarmos sobre eles a responsabilidade de realizá-las. A Internet, por exemplo, deixaria de ser um veículo de comunicação espetacular para transformar-se numa espécie de fada-madrinha do terceiro milênio.
Francamente! Somos adultos! A maioria dos que se queixam e choram as mazelas da rede tem bem mais de 30 ou já passou dos 40. Temos décadas de praia, de janela, de experiência. Para quê elegermos a Internet como bode expiatório de nossas inseguranças, da nossa preguiça, da nossa indisposição e indisponibilidade para viver a realidade? A realidade sim pode nos proporcionar alegria, amizades, amores. Esteja essa realidade na rede ou fora dela.
Ingenuidade, gente, só fica bem em criança e pré-adolescente. Na nossa idade, ela ganha outro nome: oligofrenia.