JOÃO EU
João Eudes, ou simplesmente João Eu, nasceu no Sítio São Paulo, da Fazenda Rodeador, no município de Picos, no Piauí, em 06 de outubro de 1937. Fora alfabetizado aos quatro anos de idade por seu avô, Mariano, que lecionava sem remuneração alguma, apenas para servir à família e à vizinhança. Os cursos aconteciam uma vez por ano e duravam 30 dias.
Em 1946, sua mãe foi nomeada professora municipal – a primeira contratada pelo município de Picos para trabalhar no Rodeador. Nesse período, Eudes retornou às aulas e permaneceu ali por dois anos; ainda assim, só podia entrar em sala depois de tocar o gado para o sítio, distante, aproximadamente, dois quilômetros do povoado. Em 1947, Dona Antônia Josefa de Sousa Lima, por questões políticas, fora demitida do cargo; a comunidade ficou sem estudos por um longo período. Assim, o ‘colégio’ apenas voltou a funcionar na entressafra, mais precisamente por dois meses durante o ano.
Foi essa a escolaridade de Eudes que, com apenas 17 anos, engoliu o pó da estrada como nômade, a andar pelo deserto da vida à procura de um oásis. Acreditando que o anjo do Senhor acampa em torno daqueles que O amam, partiu para São Paulo na esperança de transformar sonhos em realidade e tornar o necessário possível.
Seu pai era comerciante, detentor de razoável patrimônio e de economia estável, mas as grandes secas dos anos 50 arruinaram as finanças da família, levando-a à falência. Percebendo que estava na hora de caminhar com as próprias pernas, Eudes pensou em sair de casa e tentar um futuro melhor para si e para a família. Faria 17 anos em outubro e, por conseguinte, já se sentia maduro para enfrentar a vida sozinho. Seu Antônio era um homem justo, trabalhador e honesto, mas um tanto rigoroso na criação dos filhos. Às vésperas da viagem, não se sabe como, o pai ficou sabendo das intenções do filho e chamou-o para uma conversa.
– Fiquei sabendo que você está querendo ir embora pra São Paulo. Filho meu não precisa fugir de casa. Tem que sair como homem, porque, se precisar voltar, encontrará sempre as portas abertas.
Assim, em dezembro de 1954, João Eu entrou na grande São Paulo, trazendo no rosto a poeira da estrada e, no coração, a saudade de sua gente e de sua terra.
- Seu Portuga, um pingado, por favor.
Enquanto tomava seu café com leite, um homem de aproximadamente 1m80cm lançava-lhe um olhar suplicante e andava de um lado para outro como galinha prestes a botar um ovo.
- Está acontecendo algum problema, meu senhor?
- Sim. Sou piauiense; veja meus documentos. Cheguei sem dinheiro e estou tentando convencer Seu Alfredo Português a guardar minha mala. Sem bagagem, dormirei na praça até encontrar um emprego e poder pagar uma pensão. Veja minha mala; só tem objetos de uso pessoal.
- O senhor me acompanhe; vou arranjar uma acomodação.
Dona Maria era uma senhora mineira que morava em São Paulo há muitos anos. Proprietária de uma pensão, tinha duas filhas muito bonitas e parecia querer jogar uma delas nos braços de João Eu. Não se cansava de tecer elogios ao rapaz e até se atrevia a dizer: “Tá faltando um braço de homem neste hotel pra me ajudar a ganhar dinheiro, mas essas minhas filhas não servem nem pra me dar um genro! Tenho uma boa freguesia. Aqui mesmo entre os hóspedes tem rapaz de bem, capaz de fazer qualquer uma delas muito feliz.”
- Dona Maria, tem visita pra senhora!
- Quem é, Joãozinho?
- É Pedro, meu conterrâneo. Veio pra São Paulo aventurar a sorte. Está desempregado e sem dinheiro. Eu garanto o pagamento de sua alimentação durante 30 dias.
- O rapaz está hospedado. Por enquanto, leve a mala dele pra seu quarto.
Pedro Macambira levou um susto. Queria apenas um lugar para guardar suas malas, enquanto dormia em qualquer banco de praça; contudo, encontrara um samaritano. Emocionado, mordeu os lábios para conter o choro e não se acanhou de dizer: “Então, a senhora poderia adiantar uma refeição, pois estou há dois dias comendo apenas pão seco.”
- Cuida desse homem. - disse o samaritano à hospedeira - Quando eu voltar, pagarei a refeição que lhe serviu. - dizendo isso, afastou-se, tomou a condução e foi trabalhar.
O novo hóspede ainda estava extasiado; contudo, agora, alimentado e sonolento, cochilava relaxado num sofá. Então, D. Maria voltou-se para ele.
- Seu Pedro, posso fornecer-lhe uma refeição por dia. No momento, não temos vaga para o pernoite. Joãozinho, porém, trabalha das 22 h às seis da manhã. Hoje, o senhor dorme na cama dele. Vou trocar os lençóis. Mas cedinho, por favor, levante-se e procure um lugar para dormir até que surja uma vaga.
João Eu tinha consciência do preconceito que sofre o nordestino, em São Paulo. Nunca é chamado pelo nome; apenas pelos codinomes de ‘nortista’, ‘paraíba’ ou ‘baiano’. Decerto aquele homem deveria ter nascido numa favela da capital. Conhecia muito bem a pobreza dos que se abrigam em casas de palha, na preferia de Teresina. Aquele, sem dúvida, era um desses.
- Seu Joãozinho, eu autorizei o conterrâneo a dormir em sua cama esta noite. Mas não se preocupe; troquei todos os forros depois que ele levantou. Mandei que procurasse um lugar para dormir a partir de amanhã, porque o senhor sabe... estamos sem vaga.
- Não, Dona Maria. Se ele voltar, pode deixá-lo dormir em minha cama. Pagarei meio pernoite por ele, além da refeição, pelo menos durante um mês. Isto é, se a senhora concordar, pois só preciso da cama de dia.
- Tudo bem. - disse ela.
Nas duas primeiras semanas, o nortista não conseguiu emprego. Fazíamos uma coleta entre os hóspedes para arranjar-lhe o dinheiro da condução enquanto procurava serviço. Até que, na terceira semana, apareceu-lhe um emprego numa fábrica de bicicletas. Ficou na pensão até completar um mês. Agradeceu e retirou-se; nunca voltou para visitar-me ou para oferecer algum pagamento.
LIMA, Adalberto; SILVA, Francisco de Assis Lima. Fagulhas e Lampejos.