A CRIANÇA QUE HÁ EM MIM

 

            A criança que vive em mim não brincou com bonecas caras. Seus brinquedos eram quase todos inventados. Criados a partir de suas fantasias. Brincava de “faz de conta”, “mulher de pedra”, “amigo invisível”, “dedo mindim” (essa eu não consigo lembrar como era). Transformava ossos em vacas, cabos de vassouras em cavalos, redes em caminhões e mil outras coisas que nos divertia o dia inteiro.

            Construía suas casas de bonecas com galhos secos ou dentro das cocheiras dos animais. Andava a cavalo. Nadava. Corria pelos campos. Nunca sentiu falta de nada. Gostava da vida livre vivida no campo. Seus sonhos eram do tamanho de seu universo. Cabiam todos naquela casa de alpendre e cheia de crianças. Não imaginava outra vida, aliás, não tinha tempo de pensar sobre isso. Gastava toda sua energia em brincadeiras e traquinagens.

            Toda minha infância foi vivida na zona rural, com raros passeios na cidade, que não me atraiam nem um pouco. Achava estranhas aquelas casas próximas uma das outras, aqueles carros (e eles eram bem poucos) atrapalhando as ruas, aquelas portas fechadas (e olha que a cidade a que me refiro devia ter, na época, uns mil a mil e quinhentos habitantes). Gostava mesmo era de minha Várzea da Cal, com suas quatro casas, incluindo a casa grande onde morávamos.

           Os sonhos eram tomados aos goles na espuma quentinha do leite bebido no curral, ou na água cristalina carregada em ancoretas no lombo de um jumento; ou caminhavam nos passos mansos do gado pastoreado, dos preás caçados, dos peixes pescados na lagoa. Tudo era festa, claro que eu sempre dava um jeito de transferir minhas tarefas para meus irmãos e ficar só brincando. Nisso eu era mestra. Quando começamos a estudar papai falou com vovó para ficarmos na casa dela, afinal eram 7 km para cidade e naquela época não havia transporte escolar. Só ficamos lá um dia.

            Combinamos com papai que era melhor irmos todo dia levando o leite que ele vendia na cidade. Conseguimos convencê-lo. E assim fazíamos dessa viagem uma aventura. Éramos cinco crianças, três lá de casa e dois de uma fazenda próxima. A ida era sempre mais rápida, não podíamos ir brincando, tínhamos que chegar a tempo para aula. Na volta já pegávamos o sol quente, mesmo assim vínhamos brincando de esconde-esconde, subindo em árvores, tomando banho de rio (na época de inverno), pulando nas poças d’água deixadas pela chuva, nos escondendo dos carros para evitar caronas e com medo de estranhos.

            Essa criança ainda vive em mim, ainda gosta de brincar e, apesar de tudo que já passou, das dores que atravessou, das perdas, ela nunca perdeu o brilho do olhar, nem a capacidade de sorrir. Apenas aprendeu a sonhar sonhos maiores... 



*Imagem - Meu lado moleca... Foto tirada em meio a uma grande farra com fihos, sobrinhos e esposo (perdão pela falta de educação, mas como é meu dia rssss).

Ângela M Rodrigues O P Gurgel
Enviado por Ângela M Rodrigues O P Gurgel em 12/10/2008
Reeditado em 12/10/2010
Código do texto: T1225016
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