ANÁLISE DE CANTADAS 3 (“– Você acredita no amor de Deus?/ – Sim./ – Então me dá um beijo pelo amor de Deus”)
Para analisarmos esta cantada, temos que ter, simulado em nossa mente, o contexto óbvio que normalmente envolve as cantadas. Ou seja, temos uma pessoa (denominada locutor) que se dirige a outra pessoa (o interlocutor), com pretensões sentimentais. Pretensões estas que o tornam atento a todas as possibilidades que possam servir de brecha para a introdução de “temas” (no caso desta cantada, o beijo) relativos ao universo do sentimento (paixão, amor). Consciente das limitações desta postura, posto que “as possibilidades” podem não surgir por conta própria, é natural que o (a) interessado (a) se interponha, buscando gerar condições favoráveis.
No caso da cantada em análise, a pergunta feita pelo locutor (– Você acredita no amor de Deus?), cuja função é preparar o ambiente para a cantada propriamente dita, não atingiria a sua finalidade, se a resposta fosse negativa. Todavia, o locutor não espera tal resposta e a considera mesmo improvável, posto que em nossa cultura a crença na existência do amor divino é dominante – é tão forte que mesmo aquele que, eventualmente, não tenha uma opinião formada preferiria dar uma resposta positiva a uma negativa.
Diante do “sim” do interlocutor, aquele que emite a cantada põe em ação a segunda parte do enunciado: “então me dá um beijo pelo amor de Deus?”.
É muito comum em nossa cultura, quando se afirma algo, a exigência de uma prova que legitime o que foi afirmado. Como exemplo disto, temos a situação em que alguém afirma para o (a) seu (sua) parceiro (a): “se você me ama, então se case comigo!”. Interpretando este enunciado, temos: se você afirma que me ama, então prove, casando-se comigo.
Este raciocínio está na base da cantada em análise. É preciso acessá-lo, mesmo que inconscientemente (como ocorre normalmente), para experimentar o humor que emana desta cantada. É claro que o humor em questão não se resume ao referido raciocínio. Caso contrário, o enunciado que tomamos como exemplo (Se você me ama, então se case comigo!) teria também humor, o que não acontece: ninguém ri ou demonstra outras evidências próprias do humor quando o ouve.
Não é algo estranho a consciência de que um beijo não pode provar que uma pessoa de fato ame a Deus. Todavia, o locutor solicita esta prova, deixando transparecer que a sua intenção persuasiva, na verdade, nada tem a ver com a exigência de que se prove amar a Deus, mas sim com a solicitação de um beijo. O locutor (não necessariamente o que utiliza está cantada, mas aquele que é evocado por ela como sendo seu autor – o seja, o locutor ideal) quer parecer ousado e também hábil na arte de trabalhar com os recursos expressivos da linguagem, por isso se arrisca em um campo sagrado, evocando a autoridade de Deus em seu benefício. Há, todavia, certa dose de transgressão na atitude do locutor, pois, como já foi exposto acima, o seu enunciado não é verdadeiro, mas sim cheio de equívocos.
Além do que foi exposto até aqui, é necessário também fazer um confronto entre as expressões “... amor de Deus” (do primeiro enunciado) e “... pelo amor de Deus” (do último enunciado). O sentido desta última, em função de a mesma haver sido vulgarizada, não evoca objetivamente a pessoa de Deus. Prova disto, podemos citar a situação em que um pai, ocupado com alguma tarefa e sendo incomodado pelo filho, volta-se para este e lhe solicita: “Pelo amor de Deus, não atrapalhe o papai; vá brincar em outro lugar”. Está claro que este pai não precisa se concentrar na pessoa de Deus para usar esta expressão. Aliás, não precisa sequer acreditar na existência de Deus para usá-la. Para encontrarmos um sinônimo para a expressão “pelo amor de Deus” bastaria intensificar a força da expressão “por favor”, de modo que sua solicitação fosse mais expressiva. Já a primeira expressão (“... amor de Deus”) trata-se de uma referência direta a Deus, possuidor do amor mencionado. Há, portanto, grande distância entre as duas expressões. Mas o locutor ideal, humoristicamente, as aproxima como se fossem equivalentes, permitindo que o efeito humor se manifeste definitivamente.