Tá bom, mainha
.:.
– Bombeiros, bom dia!
– O Coronel Quermezé está?
– Não, senhora, ele deu uma saidinha. Quer deixar algum recado ou contato que aviso quando ele retornar...
– Como não está? Falei com ele agora mesmo e ele me falou que estava no trabalho!
– Desculpe, senhora, mas ele...
– Você sabe com quem está falando, rapaz? Eu sou a esposa dele, sou a mulher do coronel!
(Gritos)
– E a senhora sabe com quem está falando?
– Não!
– Graças a Deus! – e o telefonista de plantão põe o telefone no gancho.
Essa foi uma das primeiras ligações atendidas pelo CB Régulus no serviço de sexta-feira, véspera de um feriado prolongado.
– Rapaz, esse serviço está prometendo. De cara já fui xingado pela esposa do comandante. Cheguei atrasado pra rendição e levei um cagaço do Major...
– Quer pagar o serviço? Tiro pra você. Cinqüentinha!
– Na hora! Aproveite e atenda logo essa ligação. Deve ser a mulher do homem novamente.
– Corpo de Bombeiros Militar, bom dia! – cumprimenta o novo atendente.
– Ei, como se apaga uma vela? – diz a voz do outro lado da linha.
– ...
Minutos depois, o CB Régulus, vestindo uma roupa civil que certamente ficaria muito bem para um vendedor de picolé, aparece na sala de rádio:
– Ei, se minha esposa ligar você diz que estou fora em ocorrência, ok! Vou dar uma saidinha pra tomar todas!
– Pode ir, coligado, que aqui eu desenrolo é tudo! Fique frio e tome sua gelada sem alvoroço.
...
– Corpo de Bombeiros Militar, bom dia!
– Socorro! Tem um incêndio aqui!
– Calma, senhora. Fique tranqüila que facilita tudo. Onde fica o incêndio? Algum ponto de referência?
– É aqui na Rua S, casa 69... No meu quarto e quem está pegando fogo sou eu!
– Senhora, isso aqui é coisa séria... – a ligação é interrompida antes que o bombeiro preste os devidos esclarecimentos sobre a importância de se evitar trotes.
18h. A tropa se desloca para o arriamento do Pavilhão Nacional – é prática na vida militar hastear-se a Bandeira Nacional às 8h e derreá-la às 18h.
O CB Régulus, ignorando o momento solene, passa pela tropa e se dirige para o rancho, buscando sua etapa de alimentação:
– Ponha minha comida aí, rancheiro!
– O senhor não está arranchado, seu cabo!
– Estou de serviço, rapaz! Pode colocar logo minha etapa.
– Que porra é essa, Régulus!
– Quero comer, capitão!
– Se você pagou o serviço, seu monstro, vá comer em casa! E você não viu o arriamento da Bandeira, não?
– Vi não, senhor. Tudo bem, capitão, vou comer em casa mesmo.
...
– Você não estava de serviço, homem?
– Troquei o serviço e vim comer em casa.
– E esse bafo de cachaça? Você não toma jeito mesmo.
– Não me enche, tá! Estou com fome e quero comer!
– Está com fome e vai continuar com fome porque não tem comida, não!
– Então vá fazer logo. Ou quer entrar na porrada? – esbraveja o CB Régulus, retirando um dos chinelos dos pés.
A esposa, sem titubear, toma-lhe as sandálias, desferindo vários golpes que singram o espaço emitindo estrondoso barulho no lombo do faminto bombeiro. Com os gritos, o filho do casal aparece na sala. Ao ver o pai sendo revisitado com as harmoniosas incursões da sandália, intervém:
– Tá bom, mainha!
– Esse cabra está pensando o que da vida? Sai pra trabalhar e volta moído de pinga e ainda vem querer me bater!
– Vá dormir, painho, vá!
E o CB Régulus foi se deitar, dolorido e com as costelas batendo umas nas outras de tanta fome, uma fome ‘disgramada’.
No dia seguinte, depois de pagar os cinqüentinha do serviço:
– CB Régulus!
– Pois não, coronel!
– Foi você quem atendeu uma ligação da minha esposa ontem?
– Esposa, senhor?
– Entre na minha sala, por favor!
Minutos depois:
– Que serviço da peste! Bronca do coronel, bronca do Major, do Capitão... Perdi o dinheiro no porre que tomei. Não comi no quartel e em casa, além de também não matar a peste da fome, ainda apanhei!
– Apanhou, cabo? – exclama o recruta de serviço, o telefonista do dia.
– Apanhei, sim! Tirei o chinelo pra bater na mulher, mas ela me tomou e desceu o sarrafo em mim...
– É por isso que não uso armas, cabo. Se isso fosse comigo...
– Arma! Eu dou é graças a Deus eu ter tirado o chinelo. Se eu tivesse armado e puxado uma arma pra ela, sei não!
Nijair Araújo Pinto
Crato-CE, 04 de outubro de 2008.
02h50min
Pensamento meu: O aprendizado tem um quê de anarquista; nele, não há regras exigíveis, mas uma vontade, por vezes inconsciente, de mudança.