OS QUINZIM:UMA COISA LEVA À OUTRA

OS QUINZIM: UMA COISA LEVA À OUTRA

( Fragmento do meu Diário)

Tocou o celular: era minha mulher pedindo que levasse uns legumes para casa. Não tinha legumesna geladeira para fazer para o almoço.Depois que ela resolveu estudar para concurso público ( valha-me Deus!) é assim: estabeleceu-se uma nova divisão do trabalho mais justa.Trabalho mais nas coisas de casa, dando-lhe mais tempo para debruçar-se sobre os alfarrábios e apostilhas. Assim, me desviei um pouco da rota, e lá fui eu para o supermercado. Confesso que gosto de andar pelos supermercados, no meio daquelas prateleiras, geralmente tão bem arrumadas. As verduras, por exemplo: admiro aquela profusão de cores , que nos dá vontade de ir devorando tudo. As abóboras, principalmente, estavam magníficas, maduras, com aquelas polpas vermelho-alaranjadas. Fiquei de água na boca porque adoro sopa de abóbora, feita com uma colherinha de açúcar, para dar um quê ao gosto, e um pouco de leite, o que lhe assegura um jeito assim cremoso. E associação vai, associação vem, me veio à mente – não me perguntem a razão – a Serra das Abóboras e sua gente, onde e com quem tanto negociei, nos anos de juventude, quando invernava gado.

E, como uma coisa leva à outra, lembrei-me de uma história que me foi contada naquele tempo – põe tempo nisso, gente, põe – e que reconto agora, neste meu Diário, não sei se acrescentando ou tirando um ponto, porque o tempo já apagou muita coisa e acrescentou outras, mas sabendo que o que importa não é tanto o fato, mas a versão, como dizia um político mineiro, e esta, que ora conto e que me foi contada, tem lá o seu sabor.

Na serra das Abóboras viviam umas famílias antigas conhecidas como os Quinzim. Era um povo arredio, apartado. Não creio que se encontre, hoje em dia, gente tão empacada em suas opiniões e crendices, mesmo nos mais distantes grotões deste nosso imenso Brasil. Porque o País, apesar de tudo, mudou. É outra a cabeça das pessoas.

Os Quinzim ocupavam cerca de uns cinqüenta sítios encravados em várias fazendas numa das vertentes da Serra, começando nos altos do sítio de Seo Julião Quinzim e acabando umas dez léguas depois, numa grotão conhecido como Maloca da Quinzinha. Era um pedaço de chão, se há de convir, mas quem quiser ter uma idéia, ainda que pálida, do que era aquele mundão de terras, é só mandar selar um bom cavalo, resguardar-se com uma boa matula, e correr aquilo tudo, que muitos sinais de casas de moradia e currais ainda há de encontrar. Verá, com os próprios olhos, se souber aquilatar e imaginar, como vivia aquela gente. Afinal, se os arqueólogos recriam a partir de alguns cacos culturas inteiras, qualquer interessado pode, a partir de velhas casas e currais, recriar o mundo em que os Quinzim viviam. Basta querer.

Ninguém sabia e sabe – porque alguns descendentes seus ainda lá moram - há quanto tempo os Quinzim estavam instalados em suas posses muito antigas. Colonos de diferentes fazendeiros por várias gerações, plantavam a terça, cumpriam religiosamente a sua parte e não davam bola para ninguém. O máximo que se conseguia era o cumprimento das obrigações estabelecidas desde sempre: que roçassem pastos na época própria, depois que o capim joga a semente, e participassem da colheita do café, tudo pago a dia, como era do costume. Eram homens à antiga, com tudo de bom e de mau que isso implica. Viviam sempre do mesmo modo, detestavam as mudanças, prezavam a rotina, como se fossem uma colméia de abelhas. Para eles as coisas seriam sempre as mesmas, com a conformação que Deus lhes deu, e se foi feito por Deus, era por que tinha que ser assim mesmo e não de outra maneira, porque a obra de Deus é perfeita e ai de quem quiser mudá-la. O inferno está esperando logo ali os afoitos, mesmo porque o maior dos pecados, depois da luxúria, é acreditar que se é maior que Deus, mudando o que em sua perfeição Ele determinou e fez. Em suas convicções o mundo sempre fora e seria o mesmo.

Miúdos, baixinhos, sobrancelhas unidas, olhos pequenos, eram praticamente caras de uns focinhos dos outros, como se diz, por força das uniões em família, cruza do mesmo sangue que, como se sabe, não leva a boa coisa. Os Quinzim eram do tipo com quem não se mexe se tiver juízo, porque se mexesse com um mexia com todos. E eles tinham uma espécie de tara: não temiam morrer e aquele sobre cujo nome traçassem uma cruz, o desgraçado podia crer que ou sumia no mundo para nunca mais voltar, ou estava morto, porque depois de decretada a morte, decretada estava. Era uma espécie de marca registrada lá deles.Depois de lançada a sorte tanto fazia que morressem um, dez ou vinte, porque as famílias dos viventes iam criando as crianças dos morrentes. Por isto, muitos os consideravam uma praga.Mas como eram muito trabalhadores e ciosos no cumprimento de suas obrigações e nunca deixavam ninguém na mão, eram tolerados, com muita má vontade, mas tolerados.E tinham mais uma serventia, que ninguém comentava mas que era muito útil: também: gostavam de matar, principalmente de tocaia. Então, além de tudo, eram um manancial de pistoleiros à disposição dos fazendeiros que os tinham nas suas terras. Em vez de se confrontar com eles, preferiam usá-los bem. Dos males, o menor, porque ter um povinho destes à disposição, principalmente na época de eleições, em que uns políticos sem vergonha ficavam botando umas idéias bestas na cabeça do povo, não era privilégio para se jogar fora. Porque se os Quinzim tinham aquela tara de não ter medo de morrer, como cada coisa só existe se tiver o seu contrário, também não tinham o menor escrúpulo em matar – e diria mais - tinham o maior prazer em fazê-lo, porque era de sua natureza uma terrível ferocidade. Mas levavam em conta os motivos. Não fugiam à regra mineira: dar um boi para não entrar numa briga, dar uma boiada para não sair. Apesar de tudo, eram homens de sopesar.Mas quando entravam, aí não havia mais volta; iam até o fim, não importava os custos. Eu estaria ferindo o bom gosto se fosse contar o que os Quinzim eram capazes de fazer. E se me debruço assim em descrevê-los, é porque falando do plural também estou tratando do singular; pois da mesma forma que todos eram caras de uns e focinhos dos outros, também eram praticamente iguais em suas características instintivas e em suas almas.

Bem, como veremos, não eram tão iguais assim, apesar de tudo.

Pois bem. Aconteceu na casa de um certo Seu Manoel Quinzim um fato que não poderia de forma nenhuma ter acontecido: a moça da casa, a mais jovenzinha de um grupo de oito irmãos, a Hortência, apareceu grávida assim de uma hora para a outra. Eh, diacho! Foi uma barbaridade a reação daquela família. Vou lhes dizer, se tivessem recebido a notícia de que o mundo ia acabar no dia seguinte, não teria sido pior, pelo contrário: começariam logo a rezar, esperando o cumprimento da vontade divina, com o coração cheio de esperança de se livrarem logo das dores do mundo. Mas aquela desonra, Cristo Rei !, ia ter que ser consertada de um jeito ou de outro, o que quer dizer, por um casamento feito às pressas, ou por uma morte matada. Espremeram a moça como puderam, o pai bradando e a mãe chorando e a menina esperneando. Depois de muitos rosnados do pai e dos irmãos, e de alguns tabefes de lambuja, e de muitas lágrimas da filha e da mãe, a menina abriu: “Foi o Marquinho do Seu João”. “Êta ferro, o negócio ficou mais complicado do que parecia”, rosnou Seu Manoel Quinzim. Seu João era um homem muito respeitado, grande fazendeiro, poderoso e querido por todo mundo; e não mexessem com ele não que tinha uma capangada vinda de fora, lá do Norte de Minas, terra dele; diziam que era famosa pela coragem e precisão de tiro. E Seu Manoel ficou cismado com as conseqüências, porque sua intenção era lavar a honra da filha e não começar uma guerra que ele sabia como começava, mas que ninguém, ninguém mesmo, neste mundo de Deus, poderia adivinhar como acabaria. Um cabaço valia uma vida, mas muitas, valeria?

Seu Manoel Quinzim foi ao Seu João: “Não queremos nem confusão nem muita conversa, apenas justiça. O moço casa e fica o dito pelo não dito.” Não chegaram a bom termo.Seu João, que andava meio farto das estripulias do filho, e que no fundo desejava que ele levasse um susto e tomasse tenência na vida, disse apenas: “Isto é com vocês. Vejam lá o que vão fazer, pois tudo que fizerem terá troco”. “ Vai depender dele, Sô João”, retrucou seu Manoel entre os dentes. Chegando em casa reuniu a família. Palraram muito e depois decidiram. Seu Manoel determinou : “O Chicão, que é o mais esperto e o mais pior de todos, vai atrás do moleque até na Capital no Rio de Janeiro e decide a parada. Ou o safado vem vivo para casar ou morto para agente estender o defunto num banco da praça. Ficar sem satisfação a Hortência não fica.” “Não fica memo”, clamaram todos como se fosse numa reza. Amém. E assim foi.

O Chicão viajou para o Rio de Janeiro. A viagem de trem levou mais de sete horas. Chegou todo cuspido de carvão. Seu jeito matuto chamava a atenção.Suas roupas eram diferentes. Calça de zuarte, chapelão na cabeça, botinão amarelado nos pés, camisa de algodão grosseiro, paletó branco, cinturão de sola acinzentado, pistola e punhal na cintura, na parte detrás das calças e escondidos pelo paletó. Hospedou-se numa pensão vagabunda nos arredores da Central.

A sua primeira noite foi mal dormida.Barulho nas ruas, ruídos e vozes nos quartos da casa. Gemeções sem fim. No dia seguinte saiu andando pela Cidade. Estava maravilhado e preocupado. “Como vou achar o desgraçado num mundão destes?”. Foi se informando, tomando um café aqui e outro ali: “Onde fica as mulhé dama nesta cidade?”. “Que pergunta!” – respondiam, olhando para ele desconfiados. Não atinavam quanto ao seu raciocínio: “um pilantra peralta daquele vai querer ficar no meio das putas”.Finalmente o mandaram para a Lapa. Enfiou-se num daqueles velhos cortiços, e a partir dali começou a organizar o seu tempo e a sua vida.

No início, todos se fechavam. Mas aos poucos se acostumaram com ele, ouviram a sua história, entenderam o que estava fazendo e alguns até passaram a ajudá-lo.Fator muito positivo para ele é que o consideravam ingênuo e, portanto, inofensivo. Neste ponto se enganavam, mas não tinham porque pensar de outra maneira. A maldade do Chicão era incomensurável, mas camuflada e contida. Aparentava até um jeito meio afrescalhado, porque querendo parecer bem educado o Chicão desenvolveu uns maneirismos afetados.Impressionaram-se também com a sua tenacidade na busca.

Chicão não se comunicava. Tinha medo que suas cartas fossem interceptadas ; afinal Seu João tinha muita gente a seu soldo e certamente botara um olheiro no Correio. Assim, as notícias não chegavam. Os Quinzim, inquietos, queriam uma solução, mas nada.

Um dia Seo Tufy, do Armazém, recebeu um telefonema; alguém pedia para que mandassem um recado para o Seu Manoel Quinzim: que ele, dentro de três dias, viesse à Cidade que o Chicão, lá pelas três da tarde, ia ligar para ele.

Mandaram o recado. No dia combinado, Seu Manoel Quinzim estava rente ao telefone. O Chicão e o Seu Manoel conversaram. O Chicão explicou que estava na pista, não ia dizer qual era porque podia ter boi na linha, mas que estava ficando quente. Que tivessem um pouco de paciência. “Dentro de duas semanas volto a ligar”. Manoel Quinzim disse: “tem que resolver, fio, já está dando na vista. Sabe como é este povo. Muito enxerido. Vou dizer o quê?.

Que é barriga d’água?”.Mas o telefonema serviu como um alento. Havia uma solução no horizonte.

O Chicão continuou na busca.

Numa noite, meio aporrinhado, entrou num cabaré. No palco uma mulher maravilhosa imitava a Carmen Miranda e cantava “Pra Você Gostar de Mim”. Havia eletricidade no ar. Chicão apaixonou-se perdidamente. Queria aquela mulher para ele custasse o que custasse. Queria porque queria. Coisa de gente opiniática, coisa de Quinzim.

No final do espetáculo Chicão foi apresentar-se. Ela foi fria. Olhava para ele desconfiada. Havia um mistério naquele olhar.

No dia seguinte Chicão recebeu um recado. Era dela. O bilhete dizia: “Também gostei de você, Chicão. Fiquei envergonhada: sou homem.Te quero”.

Chicão caiu de quatro. Primeiro, porque ela sabia o seu nome; segundo porque era homem. Chicão achou que aquele negócio era para despistar. “Homem? Não era possível uma coisa linda daquela ser homem”. Mandou um bilhete de volta. “Te vejo à noite. Me espere.”

Novamente viu o espetáculo extasiado. Que mulher! Que pernas! Que rosto! “Não pode ser homem”, pensava. “Isso tem coisa. Vou conferir. Mulher tem parte com o demônio”

Depois do show Chicão entrou no camarim e trancou a porta. “Que merda é esta de dizer que é homem? Pensa que sou trouxa? E como é que me conhece?”

“ Sou o Marquinho, Chicão. O homem que você veio matar”.

As pernas do Chicão tremeram. O Marquinho, sem dizer uma palavra, tirou a peruca. “Me reconhece agora? Sou tua. Me mata se quiser”.

“Filho de uma boa puta, vou te matar, porque nem para marido da Hortência você serve, seu veado filho da puta.”

O Marquinho colocou-se de joelhos, abriu os braços, com os olhos cheios de lágrimas:

“To cansado de fugir, to cansado de mentir. Me mata. Assim eu me liberto” E depois de um silêncio, olhando nos olhos do Chicão que, de punhal na mão, o fitava antes de sangrá-lo, disse: “Só quero que saiba que tenho loucura por você. Sempre te amei”. Diante daquela linda mulher, ainda que com uma face de homem, Chicão baqueou. Ajoelhou-se também e abraçou-a e beijou-a : “Te quero, não importa quem você seja. Te quero Te quero”.

E passaram a viver o romance mais intenso ali da Lapa. Os vizinhos do quarto ao lado disseram que por dias e dias foi um tal de transar e chorar a noite inteira, que ninguém mais agüentava.

Para os Quinzim, o silêncio. Não havia mais recados. A família, inconformada, depois que a Hortência pariu uma linda menina, que batizaram com nome de Orfelina, indicou um outro membro do clã para desvendar o que aconteceu. Chamavam-no Zé Dorastro, filho do Seu Furtado Quinzim, o melhor rastreador que conheciam. Não levou um mês, o Zé estava de volta.

A família reuniu-se. Então ele contou a história toda. Foi um Deus nos acuda. Durante anos os Quinzim andaram circunspetos. Vergonha, vergonha.

Existem duas versões sobre como a coisa terminou.

Uma me foi contada por um tal de Camundongo, apelido de um curandeiro, grande conhecedor de ervas, e de rezas de benzer, a quem procurei para me curar de uma sinusite crônica que médico nenhum dava jeito. A bem da verdade, ele também não deu.

Outra, pelo Joca Felício, boiadeiro, muito meu amigo.

Na versão do Camundongo, o Chicão se mandou com o Marquinho e os dois caíram no mundo e nunca mais foram vistos. Presume-se que viveram felizes para sempre. Na versão do Zeca Felício, o Chicão, mesmo vivendo um grande amor, sangrou o Marquinho. Cumpriu a tarefa a contento, mas a duras penas. Nunca mais voltou. Segundo esta versão, o Chicão morreu de tanto beber cachaça, desacoçoado da vida, lá para os lados de Ouro Branco, em Minas. Contra esta versão há o fato de que o corpo do Marquinho nunca foi encontrado. A favor, que os Quinzim eram especialistas em dar sumiço em defunto.

Há alguns anos fiz negócios com um dos remanescentes dos Quinzim. Mas confesso que em obediência ao princípio que seguro morreu de velho nunca me animei a abordar este assunto, para saber se era verdade ou mentira, e qual das duas versões finais era a verdadeira. Preferi ficar na minha. Acho que agi bem, porque talvez, se tivesse feito o contrário, não estaria aqui para contar a história.

Joao Milva
Enviado por Joao Milva em 02/10/2008
Reeditado em 02/10/2008
Código do texto: T1208331
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