Os possantes, os grilos e os cupins
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As ruas estavam tranqüilas e somente aqui ou ali se via algum transeunte.
Eu estava distraído e observava a passividade com que os carros se enfileiravam – era provável que se protegessem mutuamente na espera dos donos que os levariam para casa ou qualquer outro lugar da cidade ou do planeta. Os destinos, apesar de incertos e vários, seriam todos catalisados pela ciência.
Um senhor de avançada idade se aproxima e liga um fusquinha modelo da década de setenta. Ele dá na chave e escuto o rufar característico das possantes máquinas de outrora, hoje verdadeiros museus ambulantes que teimam contrastar com as novas máquinas automotivas. Sei que existe uma nova versão para o carro de operário, mas os atuais da mesma marca em nada se aproximam do poder histórico dos antepassados. Que o digam nossos avós! Quantos segredos eles não levaram para os túmulos, deixando, como únicas testemunhas, os bancos dos fusquinhas e os gemidos e os sussurros que se perderam no tempo.
‘Fusquinha’, ‘Pretinha’, ‘Perebinha’... Por que tantos diminutivos? Ah se meu Fusca falasse! Ah se a ‘Pretinha’ não me pegasse...
Os mesmos bancos onde nossos avós se agarraram, dentro do ‘Fusquinha’, serviam para dar conselhos aos delinqüentes presos pela Polícia em suas famosas ‘Pretinhas’. Talvez os mais moços estejam dando gargalhadas agora, mas é verdade; eram as Pretinhas (fuscas turbinados e caracterizados) que conduziam os marginais à delegacia. Duvido alguém dessa época não identificar ainda hoje o som de uma sirene de ‘Pretinha’!
Os militares eram outros; os facínoras eram outros; a sociedade era outra. Temíamos quase nada. Íamos às tertúlias e voltávamos tarde da noite, sozinhos. Saudade? Posso falar ‘que no meu tempo’... Bobagem! O tempo é o de agora e a vida é a que vivemos. O resto nos serve apenas como pano de fundo para nossas recordações e nada mais.
O ‘poçante’ fusquinha sai em disparada, deixando uma poça de óleo queimado no chão – mais uma conseqüência do tempo. E nós, homens e mulheres, como máquinas (máquinas?), também temos nossos defeitos de tubulação.
Recordo-me dos grileiros, homens astutos. Conhece a origem do termo, sua etimologia? Contou-me um amigo que em remotos tempos, época onde havia muitas terras devolutas em nosso país, muito mais que as de agora, os camponeses e os aventureiros falsificavam as datas dos documentos de posse das terras e, ao receberem os papéis da documentação, eles os colocavam em baús com grilos no interior. Os indefesos animais, ao caminharem e realizarem suas necessidades em cima dos papéis, davam às documentações aspecto de velhos, justificando visualmente a data. Folclore ou realidade? Seria esta mais uma marca da nossa colonização? Vendendo o peixe do mesmo modo que o comprei, confesso que não assinaria nenhuma daquelas folhas em branco, mesmo um branco desgastado pelo relativizado tempo que os grilos camuflavam – e olhe que no tempo das pretinhas e dos fusquinhas, cabelos brancos eram sinal de respeito e nossos patriarcas honravam o calejar imposto pelas marcas da senilidade.
Os grilos pelo menos não comiam os papéis! No máximo eles os carimbavam com selos reais. Nos quartéis onde dormiam as pretinhas, entretanto, os cupins trabalhavam vinte e quatro horas todos os dias. Esta é outra narrativa que me foi contada pelo mesmo amigo.
Contou-me ele que, à época das pretinhas, muitos milicianos cujas férias já haviam sido gozadas, requeriam-nas novamente para fins de aposentadoria.
Procuravam-se os boletins. Vasculhavam-se os assentamentos do militar e nada, nenhuma prova, não havia publicação. Gerava-se uma celeuma. Ouviam-se gritos de chefes atabalhoados com o sumiço das documentações, mas a cartada final, dissipadora de todas as dúvidas, era irrepreensível:
– Chefe, será que o boletim dessa publicação não estava no meio daqueles que os cupins comeram?
– Isso mesmo, rapaz! Nada como um bom assessor! – sentenciava o aliviado chefe.
E assim, entre grilos e cupins, caminha a humanidade.
Nijair Araújo Pinto
Crato-CE, 11 de setembro de 2008.
10h38min