Valores invertidos
Dia desses, estava eu folheando um jornal quando me deparo com a seguinte notícia: "60 mil famílias pedem o fim de seus benefícios do Bolsa Família por já estarem em situação financeira mais favorável", ou algo do gênero...
Num primeiro momento, me senti até eufórico com o gesto. Uma demonstração de caráter notável. Um exemplo de honestidade. Li toda a matéria, uma página completa com os detalhes do feito. Fiquei extasiado com aquilo. Uma ponta de esperança no negrume da corrupção em que vivemos atualmente.
Mas minha felicidade durou pouco. Ao final da matéria, uma pequena nota ressaltava o fato de além das 60 mil famílias que pediram a suspensão do benefício, outras 2,7 milhões haviam perdido o benefício por terem caído na "malha fina" do governo. Estas famílias, um número cerca de 45 vezes maior que a quantidade de pessoas ditas honestas, tentaram ocultar o fato de já não necessitarem do benefício para continuarem recebendo seus valores.
Esta nota me desgostou por completo. Apesar de estas atitudes corruptas serem comuns no nosso país, ainda assim é triste você criar uma esperança e vê-la desruida logo em seguida.
Mas, não é este o ponto. O que me chamou a atenção foi a "leve" inversão de valores e importâncias que ocorreu na publicação da notícia.
Pense: não seria correto que o grande crime que foi praticado pelas famílias fraudulentas ganhasse as manchetes e que o gesto nobre fosse apenas lembrado?
Forcemos um pouco a mente. Uma notícia ganha amplitude proporcionalmente à sua singularidade. Quanto mais raro algo é, mais ele deverá ser contado, mais atenção ele merecerá.
Sendo assim, é de se pensar que aquilo que ganha largas manchetes nos jornais são as notícias inusitadas. As casualidades do cotidiano não precisam de grande divulgação. Ninguém comprará um jornal ou uma revista apenas para ler algo que ele já conhece. O que todos querem são atrações inusitadas.
Sendo assim, nós não devemos ficar tristes ao perceber que no nosso país um gesto de honestidade merece divulgação maior do que um crime? Se uma atitude honrosa ganha destaque, isso prova que as mesmas estão se tornando raras.
E em contraponto, os crimes, as barbaridas, as atrocidades são cada vez menos divulgadas. Ninguém mais se espanta ao assistir a notícia que fala sobre novos casos de corrupção. Já estamos habituados a desconfiança. E isto é terrível.
A inversão de valores é gritante. Os gestos corretos, que deveriam ser comuns, tornaram-se raridades dignas de manchetes.
Quando você lê em um jornal alguma notícia sobre casos de alguém que agiu de forma correta, você se assusta, exclama, debate sobre o assunto, sente-se atingido.
Agora, se você ouve outra notícia sobre corrupção, sobre alguém tentando usufruir do "jeitinho brasileiro" para se beneficiar, você fica indiferente. Sequer comenta. Não há o que comentar, é casual.
Alias, permitam-me fugir ligeiramente do assunto para comentar o quão irado eu fico ao ouvir alguém dizer "jeitinho brasileiro". Porque, me enoja viver num país que exalta os trambiqueiros. Um país que ensina a seus filhos que "se da forma correta não é agradável, dá se um 'jeitinho' e você poderá se beneficiar por outros caminhos". Desde pequenos nós somos ensinados que as regras não precisam ser seguidas. Sempre que houver um furo na lei, ele deve ser usado indubtavelmente. E por fim, este sentimento infiltra-se na nossa mente. Será comum que, frente a uma situação adversa, a primeira coisa que você procure seja um "atalho". Uma forma de se beneficiar por fora das regras. E são nossos pais que nos ensinam isso. Eles nos dizem: "todos agem assim, você deve fazer o mesmo, para não ser passado para trás." E isso se torna um cíclo vicioso. Ninguém é honesto, por medo de ser trapaceado. Se isto continuar, de nada adianta reclamarmos de nossos politicos desonestos. Nós estamos criando mais e mais deles dentro de nossas casas.
Esta tradição me enoja. O fato de os gestos nobres serem cada vez mais escassos me aflige. E nada disso mudará se continuarmos com esta política de "premiar os praticantes do 'jeitinho brasileiro'". Ou então, essa sina prosseguirá. Afinal, um país que cultua sua habilidade de enganar, merece comandadentes que enganem.
Cada país tem o governante que merece.