SMS
14:32hs Nunca ganhei um livro com dedicatória!rs Adorei...
O trinado do celular sobre o criado-mudo terminou o que o calor da tarde de sábado não havia conseguido até então: o despertou. Estendeu o braço, pegou o aparelho e ficou olhando para o curto texto por alguns segundos. Pensou não responder – há vinte e quatro horas aguardava um agradecimento adequado pelo presente que lhe enviara.
Mas o aparelho logo tocou e vibrou novamente em sua mão:
14:36hs Gostei do seu propósito e do “instigante”, a palavra sem significado exato!rs
Lembrou que pensara muito ao lhe escrever a dedicatória, em especial na palavra “instigante” – e fora justamente naquela palavra que ela se fixara. A resposta lhe veio instantaneamente e nem precisou pensar para digitar:
14:37hs “Instigante”, por exemplo, é isso: alguém com percepção para as coisas inexatas... ;-)
Ele imaginava estar apenas lhe acariciando o ego, contudo, no outro lado, a muitos quilômetros de distância, com o aparelho celular numa mão e o livro na outra, ela tinha sua memória remetida à uma situação:
14:40hs Me lembrei de qdo eu te perguntei o q vc queria dizer com “instigante”.... Vc disse q não me responderia, lembra?
Ele esperava outra resposta – e não, ele não se lembrava de ter dito tal coisa:
14:42hs Não, não me lembro disso...
Ela insistiu:
14:43hs Estávamos na rua, tínhamos saído da casa da sua mãe! Vc disse em tom de brincadeira e nunca respondeu!
Ele já digitava outra mensagem quando a dela chegou, descrevendo a situação da qual ele francamente não se lembrava – mas sabia bem como e porque ela lhe era “instigante”:
14:45hs Não me lembro disso...Vc e sua memória! ... “instigante” é o q desafia, o q nunca se conhece por inteiro, o q nunca se conquista totalmente...q sempre tem algo ainda para mostrar, uma “coisa” a mais pelo que se apaixonar... Vc é instigante... ;-)
Ela parou de digitar por longos minutos, olhando diversas vezes para o visor do celular, lendo e relendo as palavras dele. Suspirou. Como estava sentindo falta daquilo! Daquele jeito de escrever, de lhe elogiar de forma invulgar, sabendo reconhecer valores nela e sem medo de dizer o que sente, com as palavras exatas – ela o admirava por isso.
“...pelo que se apaixonar”, ele havia dito – e ela lembrava que chegou mesmo a imaginar que nunca mais ouviria – ou leria – essas coisas dele. Acostumara-se a se sentir importante, muito importante – e como isso fazia falta!
Só não sabia fazer como ele, falar, falar sem medo. Não sabia. Ou não sabia mais. Acariciou o livro, chegou até a sacada, olhou para o céu. Começou a digitar, parou, apagou o que ia dizer, respirou, começou de novo:
14:52hs Nossa! Vai ver naquele dia, vc não achava q eu deveria saber q sou assim! Considera-se isso um belo elogio!rs
Foi o máximo de emoção que conseguiu expressar.
Ele divertiu-se, já esperava receber uma resposta comedida, contida. Digitou rapidamente:
14:53hs Vc é instigante pq não me concede o “direito” à estagnação...
Enviou a mensagem e voltou à mensagem anterior dela, fixando-se mais na forma do que no conteúdo, matando a saudade que também sentia de suas frases curtas e enfáticas, do seu uso aparentemente indiscriminado de pontos de exclamação ao final de quase todas as frases – a marca registrada de seus “torpedos”.
14:57hs Não concedo a vc e nem a mim, por mais q isso pareça estranho! Só não sabia q nome deveria dar a essa inquietação!
Ela não pensou muito antes de enviar a mensagem, caso contrário não admitiria a não-concessão à ele usando o verbo em tempo presente. Estava se divertindo: lembrava-se do tempo em que namoravam e conversavam assim, por SMSs, durante muito tempo seguido, trocando dezenas de mensagens diárias – e da ansiedade que precedia cada resposta dele.
Caminhando com uma xícara de café por entre a bagunça do apartamento, ele pensou em parar de digitar e telefonar, ouvir sua voz, fazer aquela conversa mais dinâmica. Mas desistiu. Sabia que ela estava saboreando o diálogo daquela forma e que o mesmo sim, era uma “concessão” que ela estava fazendo a si própria: era o jeito dela de mostrar que queria se aproximar, mas devagar, muito devagar – como era sua maneira. Como um jogador de xadrez que antevê várias jogadas à frente, ele sabia conduzir a conversa – e digitou:
14:58hs Pronto, vc já sabe: “instigante”! ;-)
14:59hs :-) obrigada pela mãozinha!rs
Ele pensou vagamente em como adaptara-se ao Short Message Service – e sua linguagem “herdada” da internet, com suas abreviações e sinais característicos, representando “estados de espírito” ou sublinhando o “tom” das frases. Ele, que há vinte anos era um grande escritor de quilométricas cartas, com as quais se correspondia com tanta e tanta gente, ainda lembrava-se de certas “preocupações” que caíram praticamente em desuso neste século, como a caligrafia, por exemplo! Ou de quando muitas vezes ia à papelaria especialmente para procurar um envelope adequado à uma correspondência especial – e da ansiedade dos dias esperando por uma carta-resposta! Agora tudo dava-se em segundos – e antes mesmo que suas divagações se concluíssem, já havia digitado:
15:00hs Ah, e eu sou mto bom com os elogios, sim... Nunca tive medo deles...
15:00hs Pq será q disso eu sempre soube?rs
15:01hs Dois anos depois, eu continuo te “enaltecendo”... É, pq será?!
Ela sentia o coração se aquecendo, uma sensação conhecida de bem estar se pronunciando levemente: de todas as tantas coisas das quais sentia falta, aquela – ser “enaltecida” – era uma cuja ausência em seus dias mais lhe doía. Sim, ele ainda a enaltecia. Ela sabia que ele sabia disso. Sabia que ele fazia de propósito, justamente porque sabia. Dizia o que ela queria “ouvir”.
Ele a estava cortejando!
Mas ela não se “entregaria” facilmente. Esperou propositalmente alguns minutos, relendo a contracapa do livro, antes de digitar e enviar:
15:05hs Talvez pq seja instigante? Mas é mais provável q seja por vc ser mto bom nisso!
Ansioso nos quatro longos minutos que aguardou por uma resposta dela, ele já havia digitado uma mensagem complementar ao que escrevera antes, que chegou ao mesmo tempo em que ela enviava:
15:05hs E “sentir-se importante” faz mta falta... (gostei disso) ...Vicia! Né?rs...
Sentada no sofá da sala, ela colocou o livro sobre o colo e o acariciou, como se acariciasse o rosto da única pessoa no mundo capaz de, mesmo longe, lhe enviar um presente tão significativo, numa hora tão exata. Imaginou-o entrando numa livraria e procurando por aquele livro – procurando aquele livro para ela! Imaginou-o à mesa de sua sala escrevendo a dedicatória, pensando cuidadosamente nas palavras que usaria. Imaginou-o embalando o presente, indo até o correio, enviando-lhe o livro. Sim, ele a fazia sentir-se “importante”. Isso, no mínimo.
Mas ela respondeu apenas:
15:09hs É...nisso vc tem toda razão!
Ele parou um pouco de tentar fazer com que ela entregasse alguma emoção pelas pontas dos dedos nas teclas do celular. Atentou para o charme daquela conversa, motivada por um livro e uma dedicatória, para a maneira sutil como se tocavam à distância, ainda que se utilizassem daquele meio de comunicação – feito sob medida para recadinhos apressados e respostas automáticas. Ele que implicava tanto com o linguajar tosco reinante nos tempos atuais, em que a internet propiciou a criação praticamente de um novo “idioma”, adorava saber que apesar de tudo isso, ainda tinha com quem conversar.
Tentou fazer com que ela notasse:
15:11hs Quer saber? NÓS somos um luxo! Hahaha ....
15:15hs As vezes me acho um LIXO, isso sim!rs... Talvez tenha q aprender alguma coisa com a Joana Gomides!
Ele sabia que ela extravasava um pouco do seu estado de espírito atual, citando a personagem central do romance – sabia que ela já estava começando a ler o livro enquanto “conversava” com ele. Mas não permitiria que o assunto prosseguisse por essa direção: de maneira nenhuma queria que ela repetisse que se sentia “um lixo” ou que expressasse qualquer idéia similar. Insistiu na idéia da mensagem anterior, se explicando um pouco mais:
15:18hs Ah! Olha só... Num tempo em q as pessoas se “declaram” com grunhidos do tipo “ti amuuuuuu!!!!!” ou “lindaaaaaaaa di+” ... Francamente, baby: nós somos um luxo!
Sabia bem sobre o que ele estava falando e no que queria tocar. Ela de fato, às vezes, sentia que o mundo era um grande deserto e a solidão, um estado compulsório, e não consentido, como ela queria fazer parecer para ele – e para si mesma.
15:22hs Fazendo comparações como essas, nem parece q cabemos todos na mesma galáxia!rs
Ele sorriu – ela lhe dera a “deixa” que desejava:
15:24hs Ah, eu sei que se eu pudesse ter uma galáxia pra mim, ia querer vc nela...
Ela achou bonito. Também gostaria de habitar a “galáxia” dele. Mas desconversou:
15:27hs Rs... a q devo a honra? Aos meus casados estados de luxo e de lixo?rs... Vc sabe q são estados complementares em mim! Ah! E aproveite q é por tempo limitado q estou admitindo isso!rs...
15:28hs Não... É pq eu já “rodei” pela galáxia toda e nunca conheci alguém como vc...
Ela fechou o livro. Emocionou-se. Suspirou. Leu mais uma vez a mensagem – e depois mais uma. Pensou responder com algo que começasse com “Mesmo que eu rode por toda a galáxia, sei que também ... “, mas não fez isso. Olhou mais uma vez para o visor do celular e digitou:
15:31hs Devo perguntar o q viria depois dos 3 pontinhos?
15:31hs Não. Deveria ficar emocionada...
Ele poderia se irritar com a suposta frieza dela – mas a conhecia tão bem! Divertia-se com o “jogo”...
15:36hs Posso considerar um outro elogio e sim! – ficar emocionada! Ou posso achar q vc quer minha presença para próprio benefício, já q eu não o deixo se acomodar!
Ele riu: apenas descontrolada ela seria capaz de uma resposta tão idiota! Resolveu então brincar:
15:38hs Hahaha! Que “egoísmo do bem” esse, não? ... Eu poderia querer vc perto apenas pq vc é “lindaaaaaaah”! ...
E arriscou mais duas mensagens totalmente fora do “jogo”, direto ao assunto – que tinha certeza de que ela ignoraria:
15:39hs Saudade...
15:39hs Vontade de te abraçar!
Ela ignorou:
15:41hs Hahaha! Vc gostou dessa, pode confessar!
15:42hs Eu sempre fui bom em confissões tb... “eu nos acuso e confesso por nós”...
Ele citou o texto de Fauzi Arap que ela conhecia tão bem quanto ele, no trecho que tão bem se aplicava à situação, à tantas situações: ele preenchendo os espaços deixados pelo silêncio dela.
15:43hs Sabe q tinha esquecido como é legal conversar com vc? Sua inteligência faz falta!
Ah! Ela havia finalmente cedido! Muito pouco. Quase nada. Mas havia ... Claro que ela não tinha “se esquecido” de coisa alguma, mas ele sabia que valor dar àquelas poucas palavras na tela do celular: ela havia tomado “emprestado” algo que ELE sempre dizia a ela.
15:44hs E eu SEMPRE disse isso de vc tb...
15:45hs Sim! Na verdade foi sempre vc quem disse, eu só peguei emprestado!rs
Ele estava contente. Poderia manter aquela conversa ainda por muito tempo, mas preferiu deixar para uma nova “partida”, para mais tarde. Digitou já com as chaves de casa na outra mão, pronto para sair:
15:47hs Eu vou sair agora... Posso ligar mais tarde? 18hs?
Ela estava contente. Poderia também manter a conversa por muito tempo – lhe dava prazer. Mas sentia-se novamente “importante”, era o que bastava. Por enquanto. Digitou antes de pegar novamente o livro:
15:50hs Não sei se vou estar aqui! Mais tarde mando torpedo! Bjos
Ele saiu para a rua.
Ela leu a dedicatória ainda mais uma vez antes de afundar-se na
leitura. Novamente fixou-se naquela mesma palavra quando o trinado do celular anunciou a chegada de uma última mensagem:
15:51hs Um beijo, pessoa instigante...