Os circos mambembes não suportaram o avanço tecnológico e arriaram as lonas, sucumbiram.
O Circo Africano tinha as lonas rotas, mas encantava as crianças da periferia. Muitos adultos, também. “Respeitável público”: com esta frase famosa o apresentador – em geral o dono do circo – de fraque, cartola e gravata borboleta abria o espetáculo. Era de partir o coração vê-los em suas indumentárias puídas.
A roupa do palhaço era cheia de buracos, mas quanto ao palhaço, vá lá, ele está no picadeiro para fazer graça, ser alvo de chacotas para que o respeitável público extravase sentimentos estancados.
Quanto aos trapezistas, os contorcionistas, as belas bailarinas – profissionais atentos – estes precisam se apresentar com a dignidade que a arte necessita.
O mágico, coitado, tinha uma cartola que estragava a surpresa da mágica, para o delírio da garotada: ela tinha um enorme furo, que deixava à mostra o rabo raquítico do coelho, na parte escondida da cartola.
O malabarista desastrado, sempre deixava cair uma peça e recomeçava tudo naturalmente, sob algumas vaias tímidas.
Confesso que muitas vezes assistia aos espetáculos com os olhos marejados, ia mais por solidariedade a esta gente simples, que lutava para sobreviver, através de sua arte e para propiciar a fuzarca de umas crianças sem oportunidade de diversão. Como recompensa, eu via seus olhinhos brilharem.
O Circo Africano era generoso, reservava um dia em que liberava a bilheteria. Praticava a inclusão social, muito antes de ela se tornar marketing político. Assim era o Circo Africano, cujo único africano, ainda sim de procedência duvidosa, era um macaco com aparência de cansado daquela vida, louco para voltar ao sossego de seu espaço.
Meus filhos adoravam e até pediram para serem fotografados em um caloroso abraço ao Idi Amin. Adoravam, principalmente, as pipocas e os algodões-doces. Ficavam paralisados diante das mágicas, assustavam-se, cobrindo os olhos com medo dos trapezistas caírem, pulavam na arquibancada de tábuas carcomidas de cupins, deixando-me tenso com a possibilidade de tudo vir abaixo, quando o palhaço fazia suas palhaçadas e tropeçava nos obstáculos colocados por um garotinho de olhos de azeitonas pretas. O palhaço se esborrachava no picadeiro e o garotinho pulava, aplaudindo, a fim de estimular o público. Nestas horas eu ria de dar nó nas tripas.
O Circo Africano, já combalido, foi nocauteado e beijou a lona para nunca mais se levantar. A juventude está ligada é na internet, nos orkut’s e suas comunidades virtuais. Não há mais lugar para os circos mambembes e seus ingênuos espetáculos. Foi então, que numa tarde cinzenta de trânsito infernal, que comecei a compreender para onde os artistas dos circos migraram.
Estava cansado, depois de um dia de muito trabalho, cujo objetivo meus sentidos não captavam, querendo voltar depressa para o refúgio do lar, tomar uma ducha e refestelar-me no sofá, quando o semáforo amarelou. Tive de frear o veículo bruscamente, para escapar da câmera filmadora e não contribuir com o erário municipal, esta instituição sedenta de recursos, muitas vezes destinados a projetos obscuros. Lembrei do dito popular “a pressa é inimiga da perfeição”. Sou um defensor ardoroso da sabedoria popular a nos ensinar que a beleza está nas coisas simples; que o segredo da boa saúde está em não se estressar: vamos devagar com o andor que o santo é de barro. O hermetismo é elitista, assim como a pressa, esta mania que a tal modernidade quer impor, faz uma cortina de fumaça em torno de interesses de poucos no afã de acumular capital.
Ainda bem que não aboliram o vermelho a nos lembrar de parar. Não fosse ele eu teria perdido um esplêndido espetáculo, que me remeteu aos bons tempos do Circo Africano: um jovem, nu da cintura para cima, de pele da cor das jabuticabas maduras, com uma calça de moletom vermelha, colada ao seu corpo atlético, com um gorro vermelho de cauda com duas bolinhas brancas na ponta e que balançavam com seus movimentos coordenados, realizou um número de malabarismo esplêndido nos poucos minutos de semáforo vermelho, para os afobados motoristas. Após a breve apresentação, fez o tradicional gesto de agradecimento, curvando a cabeça, como se aguardasse os aplausos. Em seguida, dirigiu-se aos motoristas e passageiros, para recolher as parcas moedas, que nem todos se dispuseram a entregar-lhe.
Meus olhos encheram-se de lágrimas quando o reconheci do Circo Africano. Ele era a criança que infernizava a vida do palhaço, colocando os obstáculos que o levava a engraçadas quedas. Dei-lhe uma polpuda gorjeta. Quando o sinal abriu, ainda tive tempo de vê-lo olhando-me e aplaudindo com um sorriso largo, deixando à mostra os dentes de brilhos desmesurados, reverberando nos últimos raios de sol.
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