imagem: escultura em mármore de Cicero D'Avila


Corpo e alma

Não podia errar, não podia se perder, tampouco se deixar levar por qualquer sedução que cruzasse à sua frente com atalhos de espinhos e faróis de luar. A pele com que fora vestida não suportaria cortes, sangraria tanto que nada mais restaria a não ser ela mesma... e ela mesma era uma verdade equilibrada numa mentira de braços abertos, a sua forma de se apoiar tornava seu rosto distante, enevoado, como se através de alguma vidraça chorasse o tempo perdido em seus olhos.
Mergulhada nos espelhos noturnos a beleza mascarada perdia a feição, era outra a beleza que havia na face nua entregue ao erro, seu traço desfeito era a perfeição do risco na expressão de um movimento parado sobre os dormentes que formigavam seu chão... um chão que queria tocar com as mãos numa queda perfeita em compaixão, compaixão de si mesma retida na raiz da sua natureza errante.
E, como se roubasse para si todo o ar que houvesse no mundo, respirava fundo até sentir oco o espaço que, à sua volta, obrigava, vigiava, aprisionava... o espaço que ela evadia com a vingança de um sorriso pequeno e sincero esculpido pelos cinzéis de prata no silêncio dos gestos. Uma maldade humana ria da sua própria fraqueza ao ver-se crua e espantada na forma mais bruta. Clandestina em seu próprio corpo a transgressão da alma era a sua libertação.