ELE NÃO SE ESQUECERÁ DO SEU SOFÁ
ELE NÃO SE ESQUECERÁ DO SEU SOFÁ
Marília L. Paixão
Estou com angústia. Estou com não sei o quê de angústia. Será angústia? Estou com um segredo. Acho que estou com medo. Estou diante do meu relógio com uma cara risonha e as horas dele não me ajudam a resolver isto que me dará insônia. E agora Marília? Agora a hora é outra! Não é hora de sorrir a não ser que eu queira mesmo rir na tentativa de fugir deste eu fraco. O que faço? Nada mais para fazer, Marília! Já está assinado o contrato.
Perto de mim está a casca da banana e perto do céu os meus desejos quase realizados escancarados. Estou fazendo tudo que queria. Escolhi a casa. Trocarei as fechaduras. Mandarei por cerca elétrica e a encherei de ternura.
Ainda assim estou com medo de ter algum pesadelo. Olho as caixas e tantas coisas para serem embaladas. Tantas coisas me motivam a não dar risadas. Parece que um gato comeu minha língua, mas não nossa caligrafia. Anote aí as coisas que precisamos comprar e não se esqueça dos armarinhos para os banheiros.
Ficamos tão felizes com os banheiros! Ficamos tão felizes com as garagens. Poderíamos ter dois carros! Poderíamos! Poderíamos ter filhos! Poderíamos! Poderíamos ter gatos e cachorros! Ah! Isso não poderia! Minha mãe nunca me deixou ter de criança, acho que vou me deixar agora? Nem depois que eu esclerosar a memória!
Queria que minha mãe estivesse aqui e que eu pudesse falar a ela de alguns dos meus medos. Queria que ela soubesse que entre muitos dos meus segredos a minha força maior eu herdei dela. E hoje me sentindo assim tão sem saber como explicar essa tal hesitação entre esperar mais uns dias ou não, me escondo atrás da palavra receio ou indecisão?
E quando fui pessoalmente conversar na master cabo sobre a mudança, fiquei sabendo que lá não terei acesso aos canais de TV e nem a internet pela via cabo. Terei que esperar a implantação da via rádio. Como é que é?! É isso mesmo! Ah! Sem falar na multa, na quebra do contrato...
Não era este o sossego que queria? Sair do centro urbano? Fugir das gritarias bêbadas dos freqüentadores das baladas? Fugir do barulho do freio dos ônibus e dos velozes carros da avenida semi deserta das madrugadas mais feras?
Não verá mais os olhos da Igreja que via todos os dias mesmo sem visitá-la. Não verá mais os olhos dos comerciantes da calçada. Mas também não se verá de manhã como quem não dormiu direito. Não se verá com a cara aborrecida no velho espelho. Não tema as mudanças, Marília. Não tema o morro que subirá nas três noites na volta do trabalho longe, tão longe da nova casa.
Lembre-se que o testou? Deu o mesmo resultado dos sete andares. Você chegou ao meio do caminho e sentiu vontade de sentar um pouco, mas não sentou. Você chegou na parte três do morro e olhou para o céu e depois para baixo. Imaginou o mundo num três por quatro quando desejou ajoelhar-se como as pessoas ajoelham nas igrejas, mas você não ajoelhou. Você fez-se forte e seguiu em frente. Você chegou lá no alto e assim que chegou bem em frente sua casa nova, você sorriu vitoriosa e do cansaço nem mais lembrou.
Você fez isso ao meu dia Marília! Debaixo de um sol bem quente. Você fará este percurso uma hora antes da meia-noite. Apenas por três noites. Deus lhe dará nestas noites uma mãozinha. Você não estará sozinha. Você terá voltado do trabalho, muito mais santa que pecadora. Assim como um trabalhador volta da lavoura. Deus lhe dará proteção e fôlego. O exercício lhe fará bem e a lua também. Essa mudança lhe trará mais felicidade, Marília e até com Deus mais harmonia! E se por acaso Deus estiver muito ocupado neste mesmo horário e você não se der bem sem ele. Ele mesmo se encarregará de lhe perguntar sobre a cor da poltrona: Deus te ama.