Histórias de Passageiro: Parte I
Algo em torno das cinco horas e trinta minutos da tarde, sobe na condução um garoto vestindo alguns trapos, segurando uma caixa colorida em uma mão e usando a outra pra tentar se equilibrar, segurando-se nas ferragens. Entra com seu velho olhar abatido e sem brilho, expressão “inexpressiva” e a velha vontade capenga. Mira para o nada e destila seu discurso já gasto pelas tantas horas que o repetiu naquele dia e nos outros anteriores também, com aquela entonação que destaca, singular e fortemente, a sílaba tônica de cada palavra:
“Boa tarde, pessoal. Desculpe incomodar a viagem de vocês, pessoal. Vocês, pessoas de bom coração, pessoal. Tenho cinco irmãos e minha mãe está desempregada, pessoal. E como sou o irmão mais velho, venho nos ônibus trabalhar para ajudar minha mãe, pessoal. É muito triste ver uma mãe que não tem o que dar de comer aos seus filhos, pessoal. Por isso eu estou vendendo esta jujuba, pessoal, que custa apenas cinqüenta centavos, pessoal. Mas quem não tiver cinqüenta centavos, pode me ajudar com cinco, dez ou vinte e cinco centavos, pessoal, eu aceito de bom coração! Essa moedinha não vai fazer falta pra nenhum de vocês, pessoal. Que Deus lhes dê tudo em dobro. Muito obrigado, pessoal e uma boa viagem!”
Não, caro leitor, a repetição da palavra “pessoal” não foi erro meu. Apenas repito as palavras do jovem e ainda, a muito custo, omitindo alguns erros por ele cometidos.
Entretanto, o objetivo desta crônica não é enfatizar falhas gramaticais cometidas pelo menino. Até porque os maiores e mais conceituados escritores estão, também, sujeitos a cometer algumas gafes. O objetivo real desta crônica é tentar mostrar algo que já não nos é tão estranho e que já não o é há muito: Trabalho infantil, exploração de menores, empregos mais do que informais, subjugação da capacidade humana, que é reduzia a um texto decorado em casa. Além do apelo emocional, de certo barato, mas de fato real. Não há quem olhe para uma criança daquela e não sinta ao menos remorso. Por mais pedregoso que sejam os sentimentos de alguém, não há como não se compadecer com situação tão deplorável.
O garoto termina seu discurso e passa, assento por assento, com sua caixa colorida de jujubas numa mão e com a outra tenta, ao mesmo tempo, entregar o doce ao passageiro, segurar as moedinhas que recebe e ainda por cima se equilibrar, apoiando-se nas ferragens, já desgastadas pelo tempo, da condução que já se encontra em estado lastimável.
Por fim, o garoto agradece mais uma vez e desce do ônibus com alguns centavos a mais no bolso e a obrigação de ter que subir mais uma vez, em mais um veículo de transporte público para, mais uma vez, disparar todo o seu arsenal de argumentos decorados e tentar arrecadar mais algumas moedas a fim de comprar algo para dar de comer a seus irmãos. Naquele momento me senti o pior dos cidadãos brasileiros, tanto por não ter ajudado o pobre moleque, quanto por saber que um dos culpados por o fato de a sociedade encontrar-se em seu patamar atual sou eu. Qualquer um se sentiria um lixo nesse momento. Viro minha cabeça para frente e retorno aos meus pensamentos mundanos, até que de repente, no ponto logo após o em que desceu o moleque das jujubas:
“Boa tarde, pessoal. Desculpe incomodar a viagem de vocês, pessoal. Vocês, pessoas de bom coração, pessoal. Tenho cinco irmãos e minha mãe está desempregada, pessoal. E como sou o irmão mais velho, venho nos ônibus trabalhar para ajudar minha mãe, pessoal. É muito triste ver uma mãe que não tem o que dar de comer aos seus filhos, pessoal...”
Naquele momento parei, olhei para o interlocutor, constatei e tive certeza... Era um garoto vestindo alguns trapos, segurando uma caixa colorida em uma mão e usando a outra pra tentar se equilibrar, segurando-se nas ferragens. Entrou com seu velho olhar abatido e sem brilho, expressão “inexpressiva” e a velha vontade capenga. E, mirando para o nada, já começara a destilar seu discurso já gasto pelas tantas horas que o repetira naquele dia e nos outros anteriores também, com aquela entonação que destaca, singular e fortemente, a sílaba tônica de cada palavra. A voz era bastante parecida, mas via-se claramente que era outro menino.
Pois é, caro leitor!Não só os motoristas... Passageiros também têm suas histórias.