Dos "espermatozóides premiados" e dos "óvulos irrepreensíveis"
Na minha opinião, existem três modos de se lidar com a realidade: a aceitação, a negação e o disfarce. Acredito que a negação e o disfarce são modalidades perigosas. Eu, pelo menos, tomo um super-hiper-mega cuidado em lidar com a realidade dos dois últimos modos, considero-as bombas relógio de natureza instável. Por isso mesmo crio minha filha e meus chegados, até com um pouco de exagero em relação ao real.
Mas, conheço pessoas que educam os filhos muito mal, em relação a isso, dando-lhes a impressão que o mundo é rosa suave, com árvores que produzem doces; onde unicórnios brincam na relva enfeitada de vagalumes e que, ninguém no mundo, além deles merece esse paraíso encantado, por que ele, a criança adorada, é o filhinho do papai e da mamãe.
Posso estar enganada, mas creio que isso lhes comprometerá para sempre a noção de realidade. Porém, como disse Djavan "sabe lá o que é não ter e ter que ter pra dar"?
Conheço adultos que desconhecem - é claro que já ouviram falar, mas não acreditaram - que existem outros seres humanos vivendo nas condições mais precárias; mas, na cabeça deles há um lugar onde Maria Antonieta afirma que, aqueles que não tem pão, podem até não comer brioches, mas devem comer qualquer outra coisa e, portanto, não passam fome; que o SUS atende sim, e que os médicos - coitados, uns missionários - que se dedicam tanto tem que se submeter a tocar naquela gente nem sempre limpa e educada; que não falta emprego e educação básica, essas pessoas escolhem estar no bar, ouvindo pagode e tramando assaltos.
Conheço adultos que justificam a violência pela fome, pela falta de vontade dos pais de tirarem seus filhos das ruas, pela precariedade da religião que praticam, enfim.
Como essas pessoas vão educar seus filhos, a maioria futuros próceres da sociedade, os destinados aos cargos mais altos do governo, da indústria e do comércio.
Excetuando-se alguns casos, por sinal inspiradores e magníficos, de pessoas oriundas do povo mais simples - gritam já: classe média também é povo! concordo, mas alguns não se acham, así és - que subiram na vida e hoje ocupam cargos importantes. Entraram para o alto escalão aqueles vindos dos "espermatozóides premiados" e dos "óvulos irrepreensíveis" da alta sociedade, até agora foi assim e eu não sei porque mudaria, já que o "poder" tende a perpetuar-se.
As escolas, pelo menos, deviam dar a seus alunos, em vez de aula de Atualidades, aulas de "Realidade", mas eles não querem encrenca com pais, às vezes, tão bons pagantes.
E na escola pública essas aulas também não são dispensáveis, evidentemente. Existem pessoas vivendo muitíssimo abaixo da linha do "se fudeu" que não tem nem a mínima oportunidade, nem escola lhes é garantido.
Sou professora e uma vez tive vontade de levar aquelas coisinhas mimadas e inconvenientes para o lixão da cidade, a fim de fazê-los experimentar o cheiro, o sabor e a impressão visual desse lugar.
Desisti da idéia porque não surtiria efeito maior que: em alguns despertar mais nojo do que eles já sentiam pelo ser humano que consideravam "inferiores" e, em outros, o desejo de zombar, fazer gracinhas sem a menor graça e cometer alguma malvadeza própria dos que não são ensinados sobre o respeito devido a outro ser humano.
Pais, que tem seus espermatózoides premiados e óvulos irrepreensíveis andando por ai, brincando e tendo todos os direitos, desçam do pedestal e lhes ensine que respeito humano, solidariedade e responsabilidade social, são e serão ferramentas necessárias para manter esse mundo vivo e funcionando. Ou delegue, caso não se sintam capazes disso, à escola a obrigação de ir com seus filhos muito além do videogame. Ir com eles até a realidade, que pode ser suja, feia e rota, mas certamente lhes dará melhor noção que o pink and magic world.
É, vamo ver. O T-REX não gosta de criança, acha-as cruéis e barulhentas, por isso mesmo não as come; segundo ele, são altamente indigestas.