Notícia do eterno

Lembra do tempo em que não havia o que lembrar e a imaginação tinha que se virar para construir um mundo para os olhos que inventavam o mundo?

Saudade quando é aguda, quando é pesada, culpa. O desejo intenso de voltar atrás e refazer o caminho, consertar o que não se remenda, encontrar de novo as experiências marcantes como se fossem novidades. A lembrança é essa falsa notícia do eterno a bifurcar-se em duas direções – no labirinto do passado, beco sem saída, ou na clareira do consumado que apresenta o futuro.

Esquecer, por sua vez, é fazer de conta que o presente, ou a notícia presenciada, não existe. Ou pior: esquecer é desconhecer. Entre tantos lapsos, desconhecer a diferença entre o eterno falseado e o instante feito real. Quem não se lembra não discerne onde nem o que. Habita a eternidade da dúvida sem provar a eficácia do espanto. Para espantar-se é preciso lembrança, e como raramente vem o conhecimento sem o susto, há de ser esquecido aquele que não sabe, sequer, o que é.

Aliás, para Dante, o inferno é doloroso pela lembrança da boa hora que acomete o desgraçado na hora ruim. Como se a memória do contraste, ao invés de atenuar o sofrimento, alargasse a ferida, na tortura do condenado que não se desengana ao regressar aonde não tem como ir.

Está claro que esquecer é vital, e o que não for naturalmente (automaticamente) esquecido, lembremo-nos de esquecer. Mas lembrar o que for para lembrar. Para saber mais, uma vez que lembrar é saber. O conhecimento é o resgate do conhecido, depois do sonho da descoberta.

Para amar? Pode ser, já que esquecer é deixar de amar, no mesmo dicionário romântico que define o amor como a recordação que não passa. A incursão psicanalítica diz que não pensar é uma maneira de reprimir o sentimento que a lembrança permite.

Além de conferir ao mundo coerências particulares e alucinações procedentes, essa falsa notícia do eterno permite a cada um personalizar verdades, conceber mentiras e assumir ilusões antigas.

O labirinto sem saída é um lugar para se visitar, não para viver lá.

Allegro (Dinamarca, 2005)

Direção: Christoffer Boe

Com Ulrich Thomsen e Helena Christensen.

www.cameracronica.blogspot.com

Fábio Lucas
Enviado por Fábio Lucas em 29/06/2008
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