FORA DO DIÁRIO DE CLASSE
FORA DO DIÁRIO DE CLASSE
Marília L. Paixão
Era para eu estar fazendo minhas unhas e não pensando em uma chamada de 2004.
Não era para eu estar aqui diante seu retrato. Mas como tudo veio e aqui estou diante lembranças que fazem sorrir mais que desejar esquecer, vamos logo ao que principiou essa festa. Vamos voltar ao ano 2004 após a chamada de mais uma noite de rotina. Tinha acabado de fechar o diário quando ouvi uma voz meio distraida e lacônica, mesmo que distante.
- A senhora não falou o meu nome.
Estendi o olhar para o jovem lá no fundo da sala. Seria algum aluno novo? Perguntei e alguém disse que o jovem era turista. Perguntei o nome dele e fui lá consultar no diário e encontrei o nome já riscado. Havia meses que o menino não vinha e não me lembrava de tê-lo visto.
- É a primeira vez que vem à minha aula?
- Não. Eu lembro da aula da senhora no início do ano.
Fale seu nome todo para eu anotar aqui embaixo. E por onde você andou? Vai freqüentar aulas de verdade agora?
- Não sei não, professora, mas hoje eu vim. Meu nome é Délio.
Enquanto o menino repetia o nome todo e eu conferia com o nome riscado do diário aquele nome tinha me levado ao fim da década dos 70. Não resistindo eu comentei.
-Já tive um namorado com este nome.
A sala toda olhou para mim. Bastante surpresos como se eu tivesse pela primeira vez falado alguma que não tivesse a ver com uma aula. Mas muito mais surpresa que todos os alunos eu quem fiquei com a resposta do menino.
- Quem sabe a senhora não namorou meu pai?! Meu nome é igualzinho o dele.
A sala parecia em sétimo céu. Aquele momento nunca se repetiria. Nem se uma televisão estivesse ligada na novela das oito haveria tanta audiência. E vocês sabem como é difícil manter uma sala em silêncio na década atual. Principalmente se você não começou oficialmente a aula do dia. Algo me dizia que a professora ia ter que esperar um pouquinho por que a Marília queria ter certeza se aquela possibilidade existia ou não.
Não é que a coisa fazia sentido? Pois em toda minha vida eu só tinha conhecido um Délio e aquele menino com o mesmo nome era a segunda pessoa. E quanto ao sobrenome eu não poderia ter certeza já que o sobrenome era tão comum. Vamos supor que era tipo um Siqueira da Silva. Ou seria Ferreira da Silva? Pelo sobrenome eu não saberia. Mas o primeiro nome era tão inesquecível como tinha sido o cara. Talvez não por ele, mas por toda circunstância da época do namoro.
E como aquela dúvida merecia ser desenrolada, perguntei:
- Seu pai fazia o que meu filho?!
- Ele trabalhava na Copasa.
Como uma trovoada numa noite de verão eu respondi prontamente.
- Então era ele sim!
Imaginem a sala. Como se estivessem abrindo o baú de segredos da professora que menos conversava outras coisas dentro de sala. A professora que era chamada de the flash. Alguns diziam que com menos de cinco minutos em sala eles já estavam embarcando para outra cidade diferente da parada anterior e sem direito ao restroom.
Claro que eles não falavam como elogio, falavam mais como reclamação, como quem não tinha tempo nem para respirar.
E agora aqui com vocês eu posso dizer que este Délio foi para mim muito significativo. Primeiro por ser carinhoso, um cara cheio das manhas. Se eu tivesse bestado teria sido com ele o adeus à virgindade naquela época em que minha mãe mataria qualquer uma das filhas que se atrevesse a dar a ela este desgosto. Bem, eu que não ia dar! Não que eu fosse santa, mas e o medo? Outra coisa que não esqueço deste Délio foi por ele ter sido o primeiro cara a pedir minha mão em noivado. Mesmo a gente não aceitando a gente não esquece o prazer de ter sido querida.
- Diga que mandei lembranças e que é para ele não deixar você se ausentar das aulas.
- Meu pai faleceu já tem dois anos. A senhora não ficou sabendo?