O Telefone

Era uma noite muito fria. Eu estava quieto lendo o livro Música ao Longe, de Érico Veríssimo, quando o telefone tocou. Peguei o aparelho e uma voz, do outro lado da linha me disse:

“Boa noite, eu gostaria de conversar um pouco com você. O senhor talvez não se lembre de mim, mas vou reavivar sua memória. Eu falava assim: Trabalhadores do Brasil... ”.

Então eu perguntei:

“É o Sr. Getúlio Vargas ?”.

E ele me disse:

“Exatamente”.

E eu, retornando, falei:

“Agora não sei como tratá-lo. Doutor, presidente ou excelência”.

E ele, voltando, falou:

“Pode me chamar do que você quiser, por que aqui onde estou sou apenas mais um. Ninguém aqui tem títulos. Nada levamos do mundo material”.

Eu retornando a conversa disse:

“Como o Sr tem permissão para falar com a Terra, e justamente comigo ?”

Ele retornando falou:

“Pode ser afinidade. Eu gostava muito de trens, e você foi maquinista. Mas vamos falar de tudo, menos de política. Pois aqui na minha dimensão estão vários políticos conhecidos, como Salazar, de Portugal, o Franco, da Espanha, o Truman dos Estados Unidos, o De Gaule, da França, O Hitler, o Mussolini e o Stálin estão em uma outra dimensão, muito longe de nós, mas não vamos tocar em política”.

E ele, continuando, me disse:

“É verdade que no Brasil não há mais trens?”

Eu respondi que em alguns lugares ainda tínhamos trens de carga. Entretanto, os de passageiros, praticamente, haviam acabado. E o Getúlio voltou:

“E não se sabe quem é o responsável por essa tragédia? Um país como o Brasil tem de ter trens de passageiros em todos os estados. Eu era vidrado em trens. Quantas vezes eu ia a São Paulo de trem, pela Central, desembarcando na estação Roosevelt, onde grande multidão me esperava. E agora vou lhe confessar uma coisa: Eu sempre gostei muito de São Paulo, que era o local onde o Brasil começava a se libertar do jugo estrangeiro, através de suas industrias. Havia fábricas de tudo o que os brasileiros precisavam”.

“Presidente, vários homens entendidos acharam que os trens eram deficitários e resolveram incentivar o transporte rodoviário. Hoje não temos mais as ferrovias de antigamente e as nossas estradas de rodagem não têm as condições desejadas”.

O Getúlio, então, disse:

“Que absurdo! Mas falando em coisas alegres, você se lembra de quando fizeram uma música para mim, que falava assim:

“Bota o retrato do velho outra vez

Bota no mesmo lugar

O sorriso do velhinho

Faz a gente trabalhar”.

Eu gostei muito. Outro dia, passeando por aqui em cima, dei de cara com um baixinho invocado que me disse: “Eu sou o imperador da França”. E eu lhe disse: “É não. Foi. Hoje você não é mais nada, igual a mim. Você sabe que lá no Brasil, um dia, homenagearam você com uma música de carnaval? Ele quis ouvir, e eu cantei para ele ouvir:

Napoleão era o tal

Que na vida

Escondia a mão

E coçava a barriga.

Oba, oba, oba.

Napoleão também

Tinha a mão boba.

Ele não gostou muito, mas aceitou, e continuou o seu caminho”.

Eu, então, disse ao Getúlio:

“No seu tempo, no Rio de Janeiro, o Sr. mandou prender vários humoristas que faziam brincadeiras com o Sr., pelo rádio, quando não havia a televisão”.

Então ele me disse:

“Maquinista, eu não prendia ninguém. Quem prendia era o Filinto Muller, chefe da policia do Rio, naquela época, e que era muito zeloso e severo. Mas eu mandava soltar os artistas, logo que ficava sabendo da prisão. O Silvino Neto era o meu humorista preferido. Ele fazia um jogo imaginário entre a UDN, do Brigadeiro Eduardo Gomes e o meu PTB. E ele me colocava de centro avante, onde eu marcava mais gols que o Leônidas. Alguns ouvintes fanáticos chegaram a sugerir que eu jogasse na Seleção Brasileira de Futebol”.

“Maquinista, o papo está bom, mas o nosso mentor espiritual está tocando a campainha e eu tenho de ir embora. Mas um conselho eu gostaria de lhe dar: Se você quiser ficar num bom lugar aqui, na dimensão espiritual, títulos, fama e dinheiro de nada valem. O que pode pagar a sua passagem para um cantinho acolhedor é ser humilde, caridoso e capaz de estender a mão para o seu irmão mais necessitado”.

Ele me agradeceu pelos momentos que eu havia lhe dispensado e foi embora.

O interessante é que eu também comecei a ouvir a campainha que ele mencionou. Mas era do meu telefone de cabeceira. Acordei e vi que tinha pegado no sono. O livro Música ao Longe estava caído aos pés da cama, e percebi que tudo não passara de um sonho.

Laércio
Enviado por Laércio em 21/06/2008
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