LINHA FINA
Hoje ele sonhou que a droga dessa vida havia melhorado. Acordou suado e assustado. Não saberia lidar com isso. Acostumado à solidão, acendeu a luz do quarto frio e mergulhou de novo no lago gelado da rotina sem sentido, sem propósito, sem fim.
Hoje ela sonhou que as flores do jardim haviam florescido. Acordou leve e perfumada. Pensou em dançar sem música. Acostumada à solidão, acendeu o abajur japonês e saiu em busca de terra para colocar nos vasos da sacada do seu apartamento no sétimo andar.
Ontem ele sonhou que estava triste. Acordou resignado e cansado. Seria essa a vida sempre? Seria esse tipo de dia que completaria a sua passagem por aqui? Acendeu um cigarro e resolveu chegar atrasado no trabalho.
Ontem ela sonhou que estava em Paris. Acordou extasiada e excitada. Seria esse o seu destino? Viver na cidade do amor? Acendeu um incenso e folheou as revistas de viagem.
No Domingo ele não sonhou.
No Domingo ela sonhou que tudo era permitido e sem dor. Acordou animada e curiosa. “Vou quebrar as correntes que me prendem!” Acendeu o maçarico mental e listou o que atrasava a sua vida.
No Sábado ele sonhou com os amigos. Acordou ansioso e preocupado. “Amigos?”. Imaginou de onde ele teriam saído? Acendeu o fogão, preparou o café da manhã, serviu-se de geléia e voltou para a cama.
No Sábado ela sonhou um sonho curto. Acordou enjoada e insatisfeita. Lembrou que logo outros sonhos viriam. Não acendeu a luz, virou-se de lado e voltou a dormir. O sonho não continuou.
No ano passado ele sonhou que estava frente a frente com ela novamente. Acordou feliz e completo. Caminhou pela casa pensando no que fazer. Acendeu seu coração para, alguns instantes depois, deixar a mágoa o apagar.
No ano passado ela sonhou que estava frente a frente com ele novamente. Acordou apreensiva e apavorada. Correu até a porta e verificou se estava bem trancada. Ascendeu a um estágio superior de consciência. “Sou mais do que isso. Minha vida começa agora.”