O Estrategista 48
O Estrategista 48
O estrategista nasceu num corpo de criança, como deve ser à todos, estrategistas ou não.
Chorou muito e muito pavor sentiu, enfiado naquele corpo minúsculo, ninguém entendia o que ele falava, particularmente aquele bando de adultos medonhos à sua volta.
Com o tempo constatou que não eram tão medonhos assim, e bastou só mais uma fatia de tempo para achá-los belos e amá-los demais. Se bem que, entre as fatias, confessa, sentiu muita raiva também.
Hoje ele afirma que raiva não é uma boa estratégia.
O estrategista, quando criança, subiu e desceu das árvores, dos muros e dos morros. Se banhou em todas as águas que lhe apresentaram.
Às vezes, porém, ficava quieto, vendo o mundo com assombro.
Quando jovem, certa vez ligou o rádio e achou que aquela canção fora feita pra ele: “Deus me fez um cara magro, desdentado e feio, pele e osso, simples, quase sem recheio, mas se alguém me desafia e bota a mãe no meio, dou pernada à três por quatro e nem me despenteio”.
Nessa época jogava futebol, gostava das meninas que seguiam ou não à risca, nunca namorou uma pianista, bailou nas pistas, tinha um tio vigarista e uma tia alquimista, e somente depois de velho começou a fazer rimas, sem a menor lógica e a sequer estética, preferindo sacrificar a razão dos versos do que desfazer-se deles, ainda que inversos.
O estrategista freqüentou colégios, mais do que queria, viajou o mundo, menos do que queria, desbravou o Brasil, tudo o que podia.
À vezes parava e ficava quieto, pensando que o próximo passo bem poderia ser uma estratégia.
Ele e sua mulher casaram e estrategicamente formaram um lar.
O estrategista tinha ouvido falar que a vida era um dia depois do outro, mas naqueles tempos vivia sempre no dia seguinte, no mês seguinte, no ano seguinte, o que lhe causou um certo desconforto.
Usou de todos os ardis cabíveis para contornar essa compulsão pelo amanhã, cujo sinônimo tem 4 letras, medo, e heroicamente, embora sem sucesso, vencia seus medos arranjando mais medos.
Vieram os filhos. Primeiro um, depois a outra.
Todos os dias ele agrade ao "Pai" por essa benção. Por outras às vezes se esquce de gradecer. Essa não. Essa palpita dentro dele. No lado esquerdo do peito.
Também nessa época ele não sabia que a vida oferece, gratuitamente, dois disciplinadores: o amor e a dor.
Antes tarde do que nunca, nisso ele acredita, assim como na alegria sem motivo e na bem-aventurança, ainda que tardia.
Certa vez, sereno, a medir seus engenhos, concluiu que dizer o que fosse, a quem quer que fosse, não era uma boa estratégia.
O estrategista viu mas não viu os filhos crescerem, e quanto à isso tem a impressão de quem folheia um livro ilustrado, que alguém rasgou algumas páginas. Nessa ciência ele se abstém de indagar quem, visto que toda pergunta tem uma resposta, que às vezes não convém.
A estratégia dele, nos últimos tempos, tem sido a de discernir. Ele atesta que tenta. Não alega que consiga. Mentiras para si próprio, definitivamente, é um péssimo movimento.
Às 5 para às 5 de uma esplêndida tarde de maio, o estrategista veio ao mundo. Há quase meio século atrás.
Não raro ele pára e observa, principalmente quando a circunstância está desabando, coisa que antes ele não fazia, preferindo sem fundos desafiar todos os pseudo jucundos, até que por fim aprendeu que grande é o mundo, e ele nem tanto.
Teimoso, ainda que estratégico, teima em decretar que o ser humano é bom, o universo divino, constata possuir uma tênue compreensão das coisas, das pessoas, da vida como um todo e da vida à parte de um todo.
O estrategista acredita que o tempo, depois do amor, é a coisa mais importante que existe. A utilização do tempo. Assim, de quando em quando, aqui e ali, ele compra tempo, a fim de que com calma possa arquitetar suas quimeras para o futuro de suas estratégias.
Todos os anos o estrategista vai numa espécie de lotérica e lhe dão um número. Antigamente, era um dígito só. Rapidamente o dígito se tornou 2, mas lhe avisaram que raramente chega em 3 dígitos.
Este ano lhe deram o número 48, desejaram-lhe boa sorte e que o esperam para trocar de número, ano que vem. Ele agradeceu e saiu feliz, sobretudo porque ouviu a respeito de certos casos, em que o sujeito pega o número da vez, mas nada se comenta sobre o ano que vem.