Domingo de Páscoa
O ano era 1973. Eu como maquinista dos trens de carga da Cia Mogiana de Estradas de Ferro, cheguei a Ribeirão Preto às 16:00 horas do sábado de Aleluia e, já tinha escala de retorno para Campinas, marcada para o domingo de Páscoa, às 10:00 horas.
O meu ajudante era um jovem recém saído da escola de ajudantes de maquinista. Não era de Campinas, e com um certo grau de cultura (tinha até, dois anos de faculdade) e nada o identificava com o serviço de trens, pois estava muito irritado não se conformando de ter de trabalhar naquele dia. Devo acrescentar que aquele era o seu primeiro emprego, aos 21 anos de idade. Tentei acalmá-lo dizendo que para sermos maquinistas e ajudantes teríamos de renunciar a certas liberdades, mas que a profissão de ferroviário tinha as suas compensações: ganharíamos muito bem, o trabalho era limpo e leve, mas ele não queria ouvir meus conselhos e me disse: “Eu prefiro varrer um escritório na cidade a ser mestre de maquinistas. Eu estou aqui por que meu pai foi ferroviário, mas não vou ser escravo do serviço como ele foi”.
Na manhã seguinte, depois do repouso que era feito nas acomodações da ferrovia, fomos ao Depósito das Locomotivas e recebemos duas GM, com capacidade de transportar 500 toneladas cada locomotiva. Durante o tempo de repouso fizemos as nossas refeições para a viagem, no grande fogão a lenha na casinha do pernoite. Partimos de Ribeirão Preto às 11 horas, com 950 toneladas de carga, com destino a Campinas.
O meu ajudante estava mais calmo e conformado. Paramos na 1a estação para cruzamento e o chefe da estação me disse: “O senhor pode desligar as locomotivas por que vai haver uma demora”. Então eu desci da locomotiva e numa bela sombra que a máquina fazia, comecei a almoçar, O meu ajudante ficou na locomotiva, também almoçando.
Quando eu estava no meio do almoço, apareceu um moço que nós, da carreira de máquinas, o chamávamos de “Bagunça”. Era andarilho de beira de linhas e muito respeitoso. Ele fazia o trecho de Casa Branca a Ribeirão Preto, a pé. E alguns chefes de estação, nesse setor, o deixavam dormir nos armazéns. Entretanto não eram todos que o faziam. Então eu lhe perguntei se ele estava com fome. E como ele fez um sinal afirmativo eu lhe perguntei: “Quer comer aqui no meu caldeirão? Ainda tem muita comida”.
O Bagunça pegou o caldeirão e falou: “Vou por esta comida na minha lata, pois vai servir de almoço e de janta”. Depois de comer um pouco com uma colher sua, ele me agradeceu muito e ai eu lhe perguntei sobre sua vida. Então ele me disse: “Nunca tive família. Meus pais morreram quando eu tinha quatro anos. Fui criado por estranhos que nunca me amaram. Fiquei uns oito meses na escola, e sei escrever e ler muito mal. Fiz muitos serviços até os meus 15 anos: carpi café, trabalhei em olarias, roçava pastos, mas sempre fui muito explorado.
Só me davam comida, e que às vezes era pouca, então resolvi correr mundo. Coloquei um saco nas costas e sai. Faço isso há 15 anos, e dentro do meu pequeno mundo eu sou feliz. Não preciso de dinheiro por que não tenho contas para pagar. Um dia como no outro não. Mas onde deito durmo tranqüilo. Minha consciência está limpa. Vou indo até o dia em que Deus me chamar. Ninguém irá sentir a minha falta, por que eu nada represento”.
Para terminar ele me disse: “Feliz Páscoa maquinista. Sei que o senhor tem família que o espera e essa é a maior felicidade do mundo. Vá com Deus”.
Depois de alguns minutos recebemos autorização para prosseguir a viagem. O meu ajudante chegou até mim e disse: “Eu queria que o senhor me perdoasse pelas palavras que disse ontem. Vendo como repartiu a sua comida com o andarilho, eu me senti um lixo perto da sua grandeza de alma. E eu ouvi que o homem se considera feliz, mesmo sem nada ter, ou para onde ir. Eu refleti muito e quero agradecer-lhe pelas palavras que me disse a respeito do serviço de máquinas. Vou para minha casa e retornarei aos estudos e espero concluir com êxito os anos que ainda me faltam de psicologia. E se um dia eu me formar o senhor terá grande parcela no meu diploma, Pode ter certeza que nunca irei esquecer o carinho e a sinceridade que o senhor me dispensou”.
Depois de alguns dias ele se desligou da ferrovia e não ouvi mais falar dele.