AINDA ESTAMOS AQUI
AINDA ESTAMOS AQUI
Nelson Marzullo Tangerini
Após ter assistido ao filme “Ainda estou aqui”, resolvi mergulhar no livro, do mesmo nome, de autoria do escritor Marcelo Rubens Paiva, filho de Rubens Paiva, assassinado pela ditadura, e Eunice.
A morte de Rubens foi amplamente comentada em jornais da época (1971) – principalmente, e mais detalhadamente, em jornais tabloides de oposição.
Li, também, que um sádico tenente médico, por fim, confessou ter visto o deputado Rubens Paiva agonizando no Doi-Codi da Barão de Mesquita, na Tijuca.
Penso que todos sabem os nomes dos envolvidos neste covarde assassinato. Porque não vou dar nomes aos bois, nesta crônica. Que fiquem disponíveis no livro de Marcelo Rubens Paiva. Os nomes estão lá.
Walter Salles foi cirúrgico, neste filme. Porque D. Eunice, viúva de Rubens Paiva, depois dos 41 anos, resolveu estudar Direito e dedicou-se à causa indígena – em plena ditadura ou quando o regime nazifascista já desmoronava. Boa parte do livro não entrou no filme, como o relato de perseguição a lideranças indígenas, a tortura e assassinatos dessas lideranças. Conta Marcelo que havia até um campo de concentração indígena em Governador Valadares, no interior de Minas Gerais.
Verônica, minha esposa, que assistiu ao filme comigo, trouxe-me um texto interessante, do qual já não me lembrava mais e que aqui reproduzo. Ali, Chico Avelino, neto do deputado, nos conta sobre um inesperado encontro com o capitão que dirigiu desastrosamente o país durante quatro anos:
“Em 2014, a Câmara dos deputados fez uma tocante homenagem ao meu avô, Rubens Paiva: inauguraram um busto com a sua imagem em função de sua incessante luta pela democracia – causa pela qual ele literalmente deu a vida. Minha família foi em peso.
Emocionadas, minha mãe e minha tia fizeram discursos lindos e orgulhosos sobre a memória do pai.
No meio de um deles, fomos interrompidos por um pequeno grupo que veio se manifestar. Era Jair Bolsonaro, junto com alguns amigos (talvez fossem filhos, na época eu não sabia quem eram), que se deu ao trabalho de sair de seu gabinete e vir em nossa direção, gritando que ‘Rubens Paiva teve o que mereceu, comunista desgraçado, vagabundo!’.
Ao passar por nós, deu uma cusparada no busto. Uma cusparada. Em uma homenagem a um colega deputado brutalmente assassinado”.
Vagabundo? Rubens Paiva era um engenheiro, enquanto o capitão é um desqualificado.
Acompanho, no Facebook, as postagens, referentes ao filme e à premiação de Fernanda Torres. Abaixo, há comentários elogiosos, elegantes, mas também há comentários desrespeitosos à Fernanda, aos artistas e ao engenheiro Rubens Paiva. Comentários que seguem a linha de pensamento do capitão, um sujeito abjeto, desprovido de cultura, respeito e sentimento.
Cheguei a pensar que os autores da postagem deviam deletar essas excrecências, mas, depois, pensei que é bom mesmo os fascistas mostrarem suas caras. Eles podem correr atrás de nós, pela rua, com uma arma a cuspir fogo.
Enfim, filme e livro me comoveram. Quantos outros personagens de filmes macabros e ainda inexistentes perderam suas vidas nas mãos de psicopatas que realizavam seus orgasmos torturando e matando operários, engenheiros, universitários e sonhadores? Quem sabe um filme sobre a Casa da Morte, em Petrópolis? Quem sabe sobre o forno crematório de Campos dos Goytacazes?
Faz alguns dias, o jornal O Globo noticiou que “Há 50 anos, o jornalista e professor Wladmir Herzog foi morto pela ditadura militar, após ser torturado nas instalações do Doi-Codi, em São Paulo. Os militares tentaram forjar uma versão mentirosa de que Herzog havia cometido suicídio”.
Em “O bêbado e o equilibrista”, João Bosco e Aldyr Blanc homenagearam Clarisse (viúva de Herzog) e Eunice (viúva de Rubens Paiva), bem como outras Marias que ficaram viúvas.
Em 2024, Verônica e eu visitamos o Museu da Resistência em São Paulo. Por que não um Museu da Resistência no Rio de Janeiro? Que tal no quartel do exército, na Rua Barão de Mesquita, na Tijuca, onde Rubens Paiva foi torturado e assassinado?
Ainda estamos aqui, a espera de outros filmes que mostrem a futuras gerações o que foram as trevas da Ditadura Militar.
Ainda estamos aqui, gritando alto e em bom tom: “Ditadura nunca mais!”