Pontas soltas
É incrível como relutamos a aceitar as mudanças em nossas vidas. Por mais que soframos, por mais que tenhamos sucessivas decepções, frustrações, insucessos, fracassos, dentre outras pauladas na cabeça, temos a nítida dificuldade em aceitá-las de modo que, apenas seguindo em frente é o que nos resta. De fato, olhar apara trás, não dá, dóis muito. E mesmo que quiséssemos, não iremos trazer nada de volta, pois já passou. Se erramos, paciência. Não há mais o que fazer.
Ou talvez sim...
Quem de nós nunca teve aquele sentimento de que, por mais que aquele ciclo tenha se encerrado, algumas coisas dele ficaram mal resolvidas, como se pontas soltas ficassem precisando serem devidamente amarradas. Pois é.
Quem disser que consegue separar sua vida profissional da vida pessoal está mentindo. Não tem como isso não acontecer, ainda mais nos dias de hoje. Ou será que se consegue não criar empatia, afinidade e até mesmo uma certa intimidade com pessoas que convivemos por mais horas durante o dia do que com a nossa própria família? E quando isso tudo se quebra, como fica? Aí, de uma hora para outra você é demitido e toda aquela construção social e emocional cai por terra.
Eu sei, essa é uma situação corriqueira e muita gente passa por isso. Mas, pra mim foi pior e mais doloroso ainda.
Misturemos a esse caldo emocional um relacionamento, mais precisamente um casamento. Sim, na empresa onde trabalhava ela também trabalhava e, a despeito do que muitos dizem, não era nada ruim, ao contrário. Embora fossemos de setores diferentes, fazíamos tudo juntos: acordávamos e íamos juntos, almoçávamos juntos, voltávamos juntos, fofocávamos sobre os acontecimentos juntos, confraternizávamos com a minha equipe e a dela... juntos. Tornamo-nos parte daquela organização e não tinha como ser diferente: aquilo era parte de nossa vida. Nos orgulhávamos do que fazíamos, eu era gestor de uma área e ela pertencia a outra. Éramos respeitados e referenciados em muitas situações. O fim de ano era melhor, pois tínhamos muitos eventos internos que íamos juntos, tanto como casal quanto como colegas de trabalho. Enfim, nossa vida era tudo aquilo e mais um pouco, pois ainda tínhamos nossa vida social bastante vibrante fora de lá e éramos conhecidos como o casal lindo, bonito, charmoso e agradável de se conviver.
Mas que não frutificou...
E com isso, vieram as crises. Tanto de relacionamento, quanto de confiança. Nossa vida virou um marasmo a ponto de não mais disfarçarmos nossas frustrações pessoais, pois não frutificou, não tivemos filhos e nada mais de diferente iria acontecer. Mesmo assim, seguíamos em frente, até que tivemos nossa primeira paulada: meu desligamento da empresa. E da noite para o dia, aquele mundo com mais de mil pessoas onde, de forma alguma não nos achávamos donos mas sim parte dele, me foi tirado. Mas ela permaneceu. Nossa rotina começou a mudar e já não mais tínhamos tantos assuntos em comum. De fato, minha saída da empresa acelerou as coisas ruins que se sucederiam.
Senti, no momento de minha saída, uma perda de chão. Confesso que meus sonhos profissionais também estavam calcados naquele universo, pois até mesmo meu mestrado havia feito sobre o contexto daquela empresa. Tudo tinha ido para o lixo. E por mais que eu tenha me recolocado profissionalmente alguns meses depois, o gosto amargo daquela ruptura ficou na minha boca, numa mistura de tristeza, revolta e indignação. Deixei lá o que gostava de fazer, amigos, colegas, sonhos e a minha mulher.
Por 5 anos permanecemos ainda juntos, mas nosso casamento estava definhando até certo ponto que não deu mais. Nos separamos. Ela, ainda permanecendo na empresa mas também sofrendo com as mudanças naturais de qualquer organização. Eu não conseguia abstrair da minha mente as boas lembranças. Sim, eu só tinha boas lembranças daquele ambiente, apesar de toda a frustração que a direção da empresa havia me impingido.
Quando finalmente ela se desligou da empresa, senti um baque, pois, por mais separados que estávamos, confesso que ainda tinha ela lá como mais um pequeno vínculo daquilo que guardava com carinho na memória. E se foi.
Anos se passaram quando me desliguei da empresa onde estava. Foram sete anos até que ela fosse vendida e eu ficasse a mercê novamente do mercado de trabalho. Mas foram apenas alguns meses parado, pois aquela empresa novamente me chamou sob o argumento de que, desde minha saída , o setor o qual eu era gestor nunca havia se alinhado, levando-os a me fazer uma proposta profissional atraente para o retorno.
Com bastante entusiasmo eu aceitei, mesmo que consciente de que não encontraria mais tudo aquilo que vivi e que a empresa em si havia mudado. As pessoas haviam mudado, algumas trocado de trabalho, outras promovidas e outras até falecidas. Mesmo assim eu topei. E mesmo fazendo um trabalho mental de não criar expectativas, havia algo e mim que me trazia à nostalgia. Foram os almoços de gerencia, aos churrascos de confraternização das equipes minha e dela, onde cada um de nós participava da resenha do outro, as grandes festas de fim de ano e inaugurações suntuosas de novas instalações. Confesso que sabia que nada disso seria igual, no máximo diferente. Mesmo assim, imaginava andar por aquele pátio, encontrar os velhos funcionários e relembrar as grandes realizações e entregas que fiz lá.
Assim eu voltei e como previsto, muita coisa havia mudado. Pessoas diferentes, novas regras, estrutura física da empresa diferente. Minha equipe era outra e antigos colegas haviam ido embora ou galgado cargos tornando-se enfadonhos, arrogantes e com uma empáfia nojenta por demais. Mas encontrei muitos colegas antigos queridos, aqueles que me saudaram nos primeiros dias me chamando pelo nome, me dando boas vindas. Devo admitir que tudo aquilo passou a ser um desafio emocional para mim, pois voltei sem já aquela posição que um dia tive na empresa, mesmo sendo um gestor do mesmo importante setor, e, para isso, deveria reconstruir tudo novamente. Além do fato de que, não teria mais uma ligação ao meio dia para me chamar para almoçar ou alguém para esperar no estacionamento para ir embora. Não, a coisa não seria igual mesmo.
Apesar de tudo, segui em frente no novo desafio. Nos momentos de relaxamento na copa, relembrava com os antigos as façanhas, as histórias, os causos e como eram as coisas lá atrás. Eu não escondia o choro ao entrar no vestiário ainda igualzinho como era antes ou quando passava no corredor principal que também não havia mudado nada. A bem da verdade é que tudo era novo, ou se quisesse encarar de outra forma, tudo ainda poderia ser visto como igual, mas com muitas coisas diferentes. Bem ou mal, estava me adaptando, mesmo que algumas lágrimas escapassem na saída do trabalho.
Um mês já havia se passado, faltando um dia de renovar meu contrato quando recebi uma mensagem em meu celular: fui convocado. O concurso público que eu tinha feito seis meses atrás teve seu edital de convocação publicado e não pensei duas vezes. No outro dia iniciei minhas despedidas de lá apenas para um pequeno número de colegas sem muito alarde, para que dois dias após eu não mais pisasse naquela empresa.
E assim, tudo aquilo definitivamente se encerrou. Um dia fui dispensado daquela empresa, deixando boa parte do meu coração ali mergulhado em amargura. Mas, quis o destino que ali eu voltasse, carregado por saudosismo e emoções latentes que sempre vinham a tona, mesmo já estando noutra empresa há bons anos criando laços lá, tanto quanto ali. Só que, desta vez, saí pela porta da frente deixando ela aberta, pois todos ali lamentaram minha partida. Eu sei que poderia destilar naquele momento um sentimento de vingança. Afinal, outrora fui dispensado porque não servia mais, agora chamado porque precisavam de mim e tendo minha partida lamentada porque não saberiam como contornar tudo o que se planejara com o meu retorno. Mas não.
No último dia de meu breve regresso, passei pela portaria e entreguei meu crachá ainda provisório. Fui em direção ao estacionamento e no meu carro me escorei com o olhar perdido para as janelas da empresa. Um filme de boa parte da minha vida estava passando nos meus pensamentos, podendo contemplar as inúmeras pessoas queridas que conheci e convivi, os maravilhosos trabalhos profissionais que executei e entreguei e principalmente, os momentos gostosos que tive com ela como marido e colega de trabalho. Da mesma forma como relembrei minha falecida mãe, nossos almoços familiares onde contávamos e comentávamos os fatos sobre o trabalho na mesa para todos. Coisas que não voltariam mais, mesmo se permanecesse ali.
No entanto, entendi, finalmente, que nada mais iria voltar ao que era na minha vida, mesmo de volta àquele lugar. Os vínculos com minha ex-mulher aos poucos estavam se apagando. Faço outra confissão ao dizer que dela só carrego boas lembranças, mas que aos poucos nossos laços estivessem se perdendo, seja com sua partida da cidade, seu novo casamento, a morte dos nossos cachorrinhos, a separação e partida de casais amigos ou mesmo o falecimento de minha mãe e de demais entes familiares e queridos. Agora, aquela empresa, um dos motivos que, por muitos anos, nos uniu e nos fez sermos um casal feliz.
Ali, naquele momento, percebi que na verdade, o que sobraram foram pontas soltas que eu precisava amarrá-las para dar fim àquele laço. E assim encarei aquele retorno de trinta dias naquela empresa, deixando lá toda a mágoa, frustração e saudade que guardava e apertava o meu peito. Eu precisava apagar de vez tudo o que imaginei poder um dia ter feito, concertado ou mesmo feito de um modo diferente. Eu precisava novamente passar por ali, mesmo que por apenas aquele tempo.
Fiquei por uns bons minutos chorando feito criança naquele estacionamento. Fiz uma breve oração e me despedi dizendo numa voz bem baixinha "muito obrigado". Entrei no meu carro e parti, para ali nunca mais voltar.
Aquelas pontas finalmente foram amarradas.