QUANDO O NATAL ERA VERSO

Não faz muito tempo.

Talvez tenha sido...ah sim, acho que foi anteontem.

Eu me sentava ali, na minha escrivaninha de guerra, até então a minha amiga inseparável de todos os afazeres que focavam o futuro das crianças e dos adolescentes.

O futuro naquela época era como ouro e todo adolescente ainda se postava no garimpo dos sonhos, mergulhado nas folhas espalhadas sobre sua escrivaninha. Bastaria só desenhá-lo e escrevê-lo.

Na intimidade dela, eu estava desde o início do ano letivo até os finais deles, onde a maior alegria dos anos era a aproximação das festas.

Alguma magia acontecia comigo todo final da missão cumprida.

Durante o decurso do prazo de viver mais um ano, que parecia tão longo, eu havia conhecido um pouco da História, da Geografia, da vida imponente dos grandes mitos da Terra, gente que nem de longe me parecia ser só gente de carne e osso, só mortais delicados que sucumbem ao mero invisível...e à batuta do tempo.

Naquela época eu resolvia problemas (já quase no pré-vestibular!) até dormindo- e... ah! como seria bom se todos eles continuassem pela vida apenas como desafiadoras propostas dos mestres, todas prontamente solucionáveis com as equações da Física e da Matemática.

Ali, naquela minha escrivaninha e de olhos arregalados, eu havia tomado contato palpitante com a literatura e com a poesia que soava dos livros. Eu ia do sítio de Lobato às terras insondáveis de Capitu.

E como minha escrivaninha já sabia de mim...embora eu ainda nada soubesse.

Só sentia que gostava de fazer redações como se fosse missão e há dois anos consecutivos eu ganhara concursos delas na escola do bairro. Guardei os diplominhas como quem guarda algo inestimável e inenarrável.

Talvez ali fosse um sinal das letras que tentavam pactuar comigo um elo de eterna amizade.

Havia, todavia, um magia compulsória que me sentenciava: a todo Natal que se aproximava eu comprava no bazar de sempre, com as moedas duramente economizadas no cofrinho do ano, aqueles cartõezinhos natalinos minúsculos que eram utilizados para se dependurar nos presentes (de...para...) sempre ilustrados com paisagens que apenas os sonhos alcançavam moradia.

Eram lindos e vazios de mensagens escritas e essa era a parte melhor porque os dizeres seriam por minha conta.

Primeiro passo: fazer uma lista dos amigos para os quais eu faria um desejo em verso. Eram tantos, que nem todos os cartõezinhos do mundo dariam conta da mensagem dum coração da ingenuidade.

Segundo passo: escolher com precisão a beleza da ilustração da paisagem natalina. Meu encantamento viajava nelas...e meus amigos iriam todos comigo.

Terceiro passo: montar a minha mensagem em verso. Essa parte seria toda eu, ali, despojada da matéria para ser só poema.

Seria a todos o meu presente de Natal.

A cada final de ano seria uma frase versada em novas possibilidade de poesia. Nada seria igual nem repetitivo , assim como manda a própria essência do tempo.

Eu peneirava sentimentos de estima como num exigente garimpo de palavras, como se fossem elas pedras raras e precisas duma construção sólida, a ser distribuídas na singular magia do Natal: alimento de alma para todos os caminhos.

Teria, portanto, que estar tudo perfeito porque-era certo!- seriam intangíveis presentes para toda a vida.

Então, durante algumas noites, lembro que eu despertava apressada e trocava palavras que me apareciam durante o sono. Eu não poderia perdê-las da mente ditada pelo coração...

"hum, essa aqui ficou bem mais bonita, mais significativa..."

Tudo pronto, dentro duma alegria indescritível, eu transcrevia meus desejos natalinos em versos em cada um dos meus cartõezinhos e os distribuía pessoalmente nas vésperas dos Natais.

O tempo soou no relógio. "-É hora de acordar, criança!"

Abro os olhos e hoje percebo que desperto na magia dum Natal repaginado.

Onde estou? Num sonho ou numa realidade?

Abro o computador e ,aos amigos, digito meus versos com os olhos aos mosaicos das telas.

Há até amigos avatares...isso existe, é sério mesmo?

Não encontro mais as paisagens ilustrativas dos meus cartõezinhos mágicos.

E eu... seria um avatar de poesia pelo tempo?

Nem mais os "Correios" reconhecem as felizes emoções das esperas que chegam personalizadas...então cantarolo e me pergunto quase com os mesmos versos que os "Carpenters" perguntaram ao mundo:

"Há ao menos um daqueles meus cartãozinhos para mim, senhor carteiro?"

Nos "emails" chovem mensagens comerciais e impessoais.

Os Apps oferecem o melhor presente com o melhor desconto e sem sair de casa!

No "Whatsapp" chegam mensagens robóticas, disparadas em massa, desprovidas do verdadeiro sentido natalino.

E o mais simbólico: um ser invisível e alienígena ameaça trancar a respiração do Papai -Noel caso ele ouse se aventurar pelos céus...

"-hei, acorda na essência!"-alguém sussurra...

Então, vejo que dentro de mim...nada mudou, acreditem.

Assim, fecho os olhos, sento naquela minha escrivaninha que fala e hoje comemoro em crônica o soar da minha mesma poesia natalina.

De mim...a cada um que me lê...

Quando foi mesmo que o Natal era verso?

Foi logo ali, anteontem.

Naquele mesmo lugar no qual para sempre será...

Eis o grande Milagre que tempo algum transfigura.