Cordel "Ensaio para a cegueira", de Rafael Melo
Em seu novo cordel, intitulado: "Ensaio para a cegueira", o jornalista e poeta Rafael Melo faz uma reflexão sobre o que estamos vivendo atualmente. É uma leitura densa, mas que, segundo ele, vale a pena.
Na ala oftalmológica
De um ambulatório médico
Estavam um homem cético
E ao lado um cego ancião
Logo surge interação
A conversa se inicia
O idoso é quem principia
Esse profundo diálogo
Que vai fugir do catálogo
De papo de enfermaria.
O velhinho que não via
Usava óculos escuros
Tinha sentimentos puros
Não enxergava problemas
Apesar de alguns dilemas
Levava bem sua vida
Superava a sua lida
Sem muita preocupação
Era bastante ancião
Já próximo da partida.
O rapaz, em sua medida
Também era experiente
Mas um pouco mais descrente
Com os rumos desse mundo
Não descansava um segundo
De criticar a maldade
Preconceito e falsidade
A soberba, ingratidão
Que assola a população
E é próprio da humanidade.
O velho com humildade
Disse: "O que veio fazer?"
O homem disse: "Eu vim ver
Se as córneas posso doar
Quero me desvencilhar
Do sentido da visão
Quero ver com o coração
O que com olhos não vejo
Esse é o meu desejo
Não quero os olhos mais não".
Ficou o velho ancião
Surpreso com o rapaz
Sem poder enxergar mais
Não entendia o porquê
O jovem moço que vê
E que é tão bem de saúde
Tomaria essa atitude
De cortar a própria vista
Por que o ato extremista
Flagelador e tão rude?
O cego lhe disse: "Mude
Dessa sua opinião
Não insista nisso não
Que a visão é dom divino
Que se ganha inda menino
Com as lentes da esperança
Os olhos guardam lembrança
Na retina da memória
Toda nossa trajetória
Desde o tempo de criança".
"Decidi essa mudança
Por já estar bem cansado
De ver ser abandonado
Um pobre menor de idade
Posto à marginalidade
Por não ter educação
Lavar carro de barão
Ao invés de ir para a escola
Tendo que encontrar na bola
A porta da salvação".
"Eu entendo, meu irmão,
O seu descontentamento
Mas veja por um momento
As coisas com mais beleza.
O café bem quente à mesa
No final de mais um dia
Na hora da ave-maria
A família reunida
Toda a mesa preenchida
Os pais cuidando da cria".
"Isso é uma utopia
Nos dias que nós vivemos
Enquanto bem nós comemos
Outros não têm tanta sorte
Muitos chegam é à morte
Por causa de inanição
Porém em um casarão
Sobra comida à vontade
E nas ruas da cidade
Num há mesa, que dirá pão?"
"Pessimista é a visão
Que o senhor tem dessa terra
Suba no alto da serra
E olhe para o horizonte
As curvas que faz no monte
O sol se pondo a dormir
A lua pondo a sair
E a noite esfriando o dia
Isso é mesmo poesia
Ai se isto eu pudesse vir".
"Eu já cansei de ouvir
A sua argumentação
Por isso peço perdão
Mas quero que me entenda.
É como se houvesse uma venda
Tapando os nossos reflexos
São movimentos complexos
De quem quer que não vejamos
Vemos, mas não enxergamos
Esses atos e seus nexos".
"Agora fiquei perplexo
Com sua divagação
Isso é religião
Que lhe pede um sacrifício?
Ou saístes de um hospício?
Tu estás em depressão?
Querer perder a visão
Pra dar para outra pessoa
Não é atitude boa
É coisa que vem do cão".
"Não é nada disso não
Religião é negócio
Fizeram Jesus de sócio
Para arrecadar dinheiro
Tem esquema caloteiro
Em tudo que é igreja
Enquanto um coitado arqueja
Pra honrar do dízimo a parcela
Uma apócrifa capela
De luxo é que se azuleja".
"Vamos deixar de peleja
De discutir a tristeza
Vamos falar da riqueza
Que o nosso mundo detém
A força que o homem tem
Pra trabalhar sem medida
A mulher que é tão querida
E bela, eu me lembro bem
E dos idosos também
Fase mais linda da vida".
"A renda é mal dividida
O homem é explorado
O idoso é maltratado
Por já não produzir mais
A mulher, força voraz
É vista como sobejo
Portanto, o que eu mais desejo
É que um raio, um relâmpago
Queime do meu olho o âmago
Pra me tirar esse pejo".
"Pois olhe pro relampejo
Que cai depois da baixada
E a terra sendo caiada
Da chuva que vem do céu
A água pelo chapéu
Do telhado de sua casa
Uma nuvem que abre a asa
Pra formar o arco-íris
Tudo isso em tua íris
Não é algo que te abrasa?"
"Eu só vejo é o que atrasa
A nossa sociedade
Vejo a água na cidade
Enquanto falta no rancho
A água que eu todo ancho
Me banhava no açude
Agora somente acude
Quem pagar a sua monta
Tiver em dia com a conta
Coisa que eu nunca pude".
"Aí que você se ilude
Ainda há muito riacho
Para se banhar por baixo
Das copas da carnaúba
A sombra da jataúba
O fruto do umbuzeiro
Os braços de um facheiro
A cachaça da umburana
O doce caldo da cana
O nosso bioma inteiro".
"Não vejo com esse esmero
A nossa fauna e a flora
Somente o que me aflora
É pena da natureza
Gente sem delicadeza
Devasta, desmata e some
Diz que é pra matar a fome
Pra vestir e pra beber
Mas como é que pode ser
Se tem gente que nem come?"
"Não penso que seja o homem
Culpado de tudo isso
Creio no seu compromisso
Com o bem da humanidade
Pra bem de toda a verdade
Homens são todos iguais
Diferenças sociais
Não importam para Deus
Que acolhe até os ateus
Nas casas celestiais".
"Pois nos dias atuais
É justo na diferença
Que reside a desavença
Entre classes, etnias
São várias democracias
Cada qual conveniente
E o povo convalescente
Pensa estar bem de saúde
Caminha prum ataúde
Todos feitos indigente".
"Eu sei bem que o diferente
É muito discriminado
Mas você é iluminado
Porque pode enxergar bem
Ver a cor de um vem-vem
Colorindo o seco galho
Ver uma manhã de orvalho
Com a névoa se formando
Ver a chuva transportando
Pelas estradas cascalho".
Eu só vejo é o trabalho
Matando o pai de família
Que não pode ver a filha
Não tem tempo para os pais
Vejo os sinos dos chacais
Entoando o seu badalo
Cavalgando num cavalo
Vejo o medo e a violência
Pisoteando a decência
Por isso que não me calo.
"Você pode ver o galo
Com o casco avermelhado
Da natureza pintado
No solo da Caatinga
Toando a sua cantiga
Em um boqueirão à margem
Se alimentando de bagem
De pequenos grãos, sementes
Tudo isso o que tu sentes
Para mim é só miragem".
"Realmente é bela imagem
A que o senhor me descreve
Porém isso ainda num serve
Pra mudar minha opinião
Eu vejo é o alçapão
Prendendo a passarinhada
Vivendo toda enjaulada
Nas casas do ser humano
Entrando ano após ano
E o Ibama nunca faz nada".
Daí não se falou nada
O silêncio se instalou
Um vento forte adentrou
Aquele lugar gelado
O velho cego abalado
Caiu em um denso pranto
Cada lágrima no canto
Dos olhos deficientes
Como brasas bem ardentes
Queimavam o rosto santo.
Ele disse: "Esperei tanto
Pra viver esse momento
Vim aqui com um intento
Que era ganhar um transplante
Receberia o implante
Dos olhos de um doador
Mas ao falar com o senhor
Os olhos você me abriu
Não quero ver o Brasil
Nesse cenário de horror.
Eu queria ver amor
Não a dor e o egoísmo
O forte proselitismo
De uma classe dominante
Não serei testemunhante
De um sistema tão imundo"
Deu um suspiro profundo
Soluçou a sensatez
Fechou os olhos de vez
E partiu para outro mundo.