A FOME

É magra e não tem dente

A boca essa não usa

Vaga tonta e confusa

Nasce e morre doente

Vazia alma demente

Pobre e de curto nome

Em si mesma se consome

Vestida de sofrimento

Se prostra sem alimento

E morre porque não come.

A mesa mostra vazia

Os fantasmas da refeição

Vagando de vão em vão

Com sua mortalhas frias

Abanando ventanias

Sobre as caveiras toscas

Alimentando as moscas

No banquete das desgraças

Servindo-se das carcaças

Apodrecidas e ocas.

É só e não tem parente

Ninguém quer ser sua irmã

Respira urgente afã

Um sopro que já não sente

Rasteja busca a semente

Pequeno grão ilusório

Sua dor é um empório

De cinzas, pó e fumaça

Onde a tristeza laça

A sina pro purgatório.

Ao olhar para a riqueza

Espreme a dor em molhos

Já não tem nada nos olhos

Que lhe molhe a tristeza

É cativa vivi presa

Na prisão da agonia

Desejando que um dia

O leite molhe seu chão

E a vida seja o seu pão

Pra sua boca vazia.

A sua feia aparência

Assusta em demasia

É algo que arrepia

É medo é decadência

É pavor que dá demência

É delírio em profusão

É o maior bicho papão

De toda a humanidade

É o cutelo da maldade

No pescoço da nação.

Mendiga noite e dia

Aceita tudo que dão

Chora estende a mão

Mirrada, fraca e fria

Procura pelo o guia

Do fogo vivo da caça

Mas a dor é uma traça

Que corroí a esperança

Valsando a triste dança

No salão da desgraça.

Pra iludir o vazio

Solta o bafo no prato

O desgosto é um jato

No céu da boca sombrio

Ainda resta o cio

Essa sensação antiga

A escassez faz intriga

A morte é testemunha

arrancando com a unha

Tudo que tem na barriga.

Seus braços finos enlaçam

Os vermes em suas tripas

Que secam sobre as ripas

Por onde os ratos passam

Os urubus ameaçam

Um fúnebre voo no ar

E em breve irão pousar

Nas viseiras da carniça

Que sob o sol quente atiça

Um desalento sem par.

O seu canto é dolente

Pois canta o desencanto

Quem ouvi tão triste canto

Não quer ouvir novamente

Este canto inocente

Que canta pra não gemer

Vai cantando ate morrer

Os cantos da sua sina

E em um canto declina

O cantar do padecer.

Se joga no precipício

Da vergonha e do temor

A língua sente o sabor

Do suor do sacrifício

A tortura do silício

Cinge o pudor sangrado

E o seu passo minguado

Não tem forças pra vencer

Pede a Deus para morrer

Pra ser um grão enterrado.

É tal qual a cascavel

Rastejando na garganta

Dá o bote se encanta

Cospe a saliva de fel

Bebi o veneno cruel

Troca de pele gemendo

E aos poucos vai morrendo

Por não comer sua cura

Ruma para a sepultura

Como a lesma tremendo.

Dorme não porque descansa

Mas pra sofrer sem esforço

Sonha com fecundo poço

No leito da esperança

Mas nem um sonho alcança

Só sente as mãos estranhas

Com caricias tão tacanhas

Que chegam ate doer

Pois o sonho de comer

Corroí ate as entranhas.

Acena para o poder

Em um gesto suplicante

Nem o "inferno de Dante"

Encena este padecer

É o holocausto do ser

No Auschwitz da vida

É a bomba mas temida

Que assombra a nação

É o fogo do dragão

Na praga e na ferida.

Ela é a vaca magra

Pastando sol e poeira

É o licor da canseira

É o fel que embriaga

É a guerra que deflagra

A luta contra a morte

É o fio que dá o corte

Na garganta da criança

Que chora só por vingança

De ter nascido sem sorte.

É a voz da lamuria

Que se ouvi no escuro

Tem hálito de monturo

É covarde e espúria

Com a sua tenaz fúria

Seca todos os odres

Ela devora os pobres

Com a boca da miséria

É uma vilã estéria

Que não conhece os nobres.

Com os seus olhos fundos

Ao lixo se agasalha

Fuçando pela migalha

Como um embrião imundo

Dentro de um ventre fundo

Feitos de folha cinzenta

Desprovida de placenta

Nascendo para a tortura

Um graveto sem gordura

Que de nada se alimenta.

Se a noite enfadada

Cobre o claro da miragem

A madrugada selvagem

Rosna como a pintada

Rasga dando unhada

Em cima do peito murcho

Retalha dando repuxo

Trucidando o âmago

Depois vai pro estômago

Que grita dentro do bucho.

Ela é bem conhecida

Mas também é desprezada

E pena acorrentada

Implorando por comida

Porem nunca é ouvida

O seu pedido é em vão

É como lama no chão

Quem vê logo repudia

Assim sofre dia a dia

Na cruz da inanição.

Ela foi batizada

Com um nome pequeno

Seu berço foi no sereno

Trajando roupa rasgada

Mamou no peito do nada

Brincou de se alimentar

Mas já não pode lembrar

Do brinquedo que comeu

Ou se o céu esqueceu

De dar-lhe o seio pra mamar.

Ebenézer Lopes
Enviado por Ebenézer Lopes em 25/03/2017
Código do texto: T5951669
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